As águas de Iara embalavam suavemente a embarcação, que era um pouco maior do que seria desejável, mas ainda assim não tão absurda quanto as chamadas
naus portuguesas. Contente sob a carícia dos raios de Guaraci, a jovem índia pouco ou nada prestava atenção ao barqueiro ou seus filhos: observava as margens passando velozes, o verde da mata e o voo dos pássaros. Usava, como em todos os momentos, o cocar emplumado típico de sua posição e importância - Filha do Cacique e pajé de seu povo. E sentia a felicidade das penas coloridas agitadas pelo vento quando ouviu o barqueiro, em diálogo com o companheiro de expedição:
João Ribeiro escreveu:-"Er... senhor Helmart, poderia por obséquio pedir para sua companheira não deixar suas intimidades a vista? Não que eu não goste, pelo contrário, ela é bem agradável de se por os olhos, mas olha ali para meus dois filhos babando e distraídos. Não queremos nos atrasar para nosso destino, não? Ah, jovens, eles não estão acostumados com estes nativos andando como vieram ao mundo."
Anahi fitou diretamente o barqueiro e então buscou com o olhar localizar os dois filhos
"babando e distraídos". Babar era algo preocupante - normalmente sinal de envenenamento. E a distração poderia ser efeito da confusão mental provocada pelas toxinas. Preocupada com a saúde dos rapazes brancos, Anahi demorou-se em contemplação de cada um deles. Observou o mais possível cada um, de cima a baixo (pareciam livres de manchas ou vermelhidões pelo corpo, não tinham sinais claros de estado febril e - mais importante de tudo - não estavam babando coisa nenhuma), até que voltou os olhos novamente para o barqueiro-pai. Talvez ele estivesse envenenado ou intoxicado de alguma forma. Afinal, não estava dizendo coisa com coisa.
"Tupã é testemunha de que não fiz necessidades à vista de todos" - os Tamoios costumavam ser bastante rígidos quanto a locais apropriados para atender aos
chamados da natureza -
"Será que foi Aimberê e esse branco está confundido?" - olhando para o caçador, Anahi não verificou nenhuma falha de comportamento. Desconsiderando as palavras sem sentido do homem com um dar de ombros bem discreto, a índia voltou sua atenção para o branco de seu grupo:
Helmart escreveu:- Povo valente é? caçadores fortes? eles nos atacariam mesmo com vocês junto da gente?
Anahi sentia um levíssimo tom de condescendência nas palavras de Helmart. Talvez porque ele falasse mais pausadamente ao se dirigir a ela e Aimberê do que quando falava com o barqueiro e a mulher-noite. Talvez porque ele usasse um tom que ela mesma usava ao falar com
curumim.
- Pá. - a índia era bastante delicada e observadora, e agora estava intrigada o suficiente com a pergunta de Helmart para se esquecer de usar a palavra
sim -
Tamoios guerreiros. Coração de inimigos aumentar valentia. - Anahi bateu suavemente com o punho direito fechado contra o peito.
O branco passou então a falar com a mulher-noite iorubá, usando uma língua que Anahi desconhecia. Mais uma vez, a índia sentiu que ele a tratava como criança, pensando que poderia manter assuntos secretos no seio do grupo. Cruzando os braços logo abaixo dos seios expostos, a jovem deu dois passos em direção a eles, determinada a fazer valer sua posição de Pajé e não se deixar menosprezar daquela forma.
Porém, estacou. Seus joelhos tremiam e sentiu uma leve náusea só de pensar em confrontar o estrangeiro. E se ela errasse todas as palavras? E se ele risse dela ou gritasse com ela ou... As possibilidades surreais de insucesso do que deveria ser uma conversa simples massacravam Anahi, que desistiu de dizer qualquer coisa e apenas se escorou a amurada do barco. Era difícil para a índia se fazer ouvir, tímida e envergonhada, cheia de temores invisíveis.
"Ah Tupã!, enche meu coração de coragem! Por que sou trêmula e mole como vermes em troncos podres." - sentindo uma crescente tristeza que nem mesmo os raios do sol espantava, Anahi deitou a cabeça nos braços, ouvindo meio abafado:
\"Helmart escreveu:- Se o escrivão da armada de Portugal não se preocupou com isso, deixe ela. E se teus filhos não te temem deveriam temer o grande caçador Tamoio.
A índia levantou a cabeça e olhou do branco para Aimberê. Ele era um caçador formidável, é verdade, mas não havia nada a temer. Ninguém naquele barco era inimigo declarado da Nação Tupinambá e, mesmo sendo capaz de derrubá-los a todos com uma mão presa às costas, Aimberê não tinha motivos para esfolar os brancos: a pele deles não tinha boa cor ou qualidade para ornamentos e o coração de nenhum dos ali presentes era prêmio que um Tamoio fosse cobiçar.
Porém, as palavras da mulher-noite fizeram a índia sair de seu estado tristonho, voltando a se focar no que realmente importava: Sebastião da Veiga.
Ashanti escreveu:― Os inimigos dele são todos aqueles quem ele já cruzou o caminho. Quando eu e Sebastião nos conhecemos nós passamos por alguns desses... Talvez vocês devam ter conhecido alguém durante suas próprias trajetórias.
A jovem foi até a outra mulher, e sentou-se ao lado dela, respeitando uma distância suficiente para que outra pessoa pudesse até mesmo sentar-se entre elas. Por ali estava também o estrangeiro, e Anahi fez sinal para que Aimberê chegasse mais perto de onde agora estavam, chamando por ele com sua costumeira voz de passarinho:
[Tupi] - Aimberê, venha. Precisamos definir um curso para as ações que nos esperam na busca por nosso gentil mentor. - após estarem reunidos, a moça falou, em sua costumeira voz de passarinho -
[Português] Inimigos muitos. Perós... homem-branco... ter muitos inimigos. Sem pista não encontrar inimigo. Sem rastro não encontrar Sebastião. Mim ouvir... - Anahi fez uma carinha de quem estava em dúvida, e olhou para Aimberê -
[Tupi] Será que existe uma palavra para estratégia na língua deles? - contudo, antes que o índio respondesse, a expressão da moça se iluminou e ela voltou a olhar o grupo -
[Português] Plano! Mim ouvir plano. Dizer.A índia olhava um por um os companheiros reunidos.