O trajeto de retorno foi longo e penoso, um calvário assombrado pelo medo da morte de Bergil. Tinham de se apressar, enquanto ainda havia como salvá-lo, mas também precisavam avançar com cautela, não só para não piorar a situação dele, mas evitando um novo encontro com lobos, wargs ou o que quer se rondasse os descampados.
Ao finalmente atingirem a base, arrastavam consigo um terrível pesar. Não apenas pelo ferido, o qual não possuía ali quem por ele chorasse, mas as expressões deixavam claro que haviam falhado.
Nada de água.
Os dias seguintes foram de apreensão e trabalho árduo: o desespero frente à ameaça de desabastecimento era contrabalanceado pela estranha história sobre mensagens de deuses antigos e desconhecidos. Muitos ouviam desconfiados os relatos do encontro com Eönwë, mas eram no fim pessoas, e pessoas tendem a se agarrar a qualquer esperança, por mais fantasiosa e pueril. Não demorara para que a preparação se iniciasse.
Reunidos, o acampamento era mais numeroso do que se julgaria de início, tendo por volta de uma centena de almas. Parte disso se dava a um novo afluxo de errantes que esbarraram por lá quando Axcelandria e o resto lutavam na floresta, os quais “compraram” a estadia com as únicas moedas que valiam naqueles tempos: armas e comida.
A maioria não passava de facões, ancinhos e outros instrumentos, mas também algumas lanças improvisadas de madeira, suficiente ao menos para uma falsa sensação de segurança. A carne que traziam era um defumado ressequido beirando o não-comestível, mas que bastava para manter o grupo novo sem pesar no racionamento previamente imposto. O importante, porém, era o como estavam fazendo aquilo. “Veem? Da forma de vocês, a durabilidade é muito menor”. E assim cerca de vinte caras se somaram e imediatamente puseram-se a trabalhar na “cozinha” dos nômades.
Paralelo àquele arrastado partir, seguia o tratamento de Bergil. Sangramento estancado, pouco podiam fazer a não ser aguardar. Pelo menos a recuperação estava correndo melhor do que se esperava. “Não era tão grave assim”, comentara alguém durante o turno na vigília. “Essa gente já morreu. Não vai de novo tão fácil”, devolvera o companheiro. E o mesmo se dava à elfa e à ave, felizmente recuperando-se bem antes. Talvez Estë tivesse mesmo intervido.
Mas Axcelandria tivera outras coisas com que se preocupar para além de tentar recuperar os ferimentos da matilha de Draugmor. Em primeiro lugar, fizera o que se esperaria de alguém com um longo tecido. Cosera-o na forma de três mantos, um para cada “retornado”. Teria feito um quarto a Ignastácia, mas, como a pesada armadura dela, aqueles panos só pareciam atrapalhar. A senhora, similarmente, preferira continuar com as antigas roupas, guardando o resto do pano para o futuro.
A águia parecia interessa-la bastante. “Olhos no céu”, comentara de maneira enigmática, colocando-a sob os cuidados de Rossengwen. E pusera-se ao estudo daqueles itens.
Quanto à corneta, como verificado antes, não era particularmente potente. Mas a anciã fora taxativa: “não devemos julgar por inferiores os presentes dados com intenção; e nem os feitos de mãos que neles puseram a alma. Os deuses têm suas razões”. Era um trabalho primoroso, nobre, apesar de não ter muitos adornos. Deixara que Arthur o guardasse. “É mais seguro. Já tenho demais com o que me preocupar”. O cantil, igualmente, era modesto, mas havia algo nele que denunciava estar longe de um trabalho ordinário.
Com a chuva da volta, haviam aproveitado para enchê-lo, tanto para beber quanto para lavar os ferimentos. Poderia ser mera impressão, mas tiveram a sensação de que beber dali matava mais a cede, como se colidas das fontes do Cuiviénen de outrora, o berço do povo das estrelas. Mantivera-o perto de Bergil.
Mas o que mais ocupava-lhe a mente era o anel. Por muito tempo o observava, media e fazia sabe-se lá que experimentos. “É imune ao fogo”, dissera. “Sinto que há ‘algo’ nele, mas não sei dizer o que é. Não tive coragem de... bem, de colocá-lo. Por mais que saiba tratar-se de um presente do Oeste”.
Como se nem ao menos dormisse, Axcela ainda encontrara tempo para uma tarefa única, a qual revelara para grande espanto de todos.
Conseguira produzir um conjunto de luminárias semelhantes às primeiras, distribuindo-o com a “vanguarda”. Uma vez que não podiam ser apagadas, confeccionou-as com uma espécie de véu para cancelar delas o brilho quando fosse necessário.
Aquilo obviamente devia ter chamado a atenção da elfa: a feitura de lanternas como aquelas eram um segredo dos Noldor que nunca escaparam das oficinas do próprio Fëanor e, apesar de aquelas cópias serem inferiores em materiais, aqueles eram trabalhos dos quais apenas os mais altos artífices do Amam seriam capazes. Uma velha qualquer jamais o teria conseguido.
E assim o tempo passou e a caravana pôs-se em movimento. Já andavam a bastante tempo, numa marcha lenta e sofrida, a qual começava a fazer vítimas, enfraquecidas demais para aquele esforço todo ou desaparecidas na noite. Foi quando Bergil finalmente acordara.
Como pudera logo perceber, a dianteira fora dada a Arthur e Rossengwen, com Ignastácia ficando com a retaguarda.
- Finalmente acordado – recepcionara-o a mulher mais velha –. Seus ferimentos parecem recuperados. Toma. Veste esse capuz e toma essa luz. Ah!, e toma também a corda. Achei que precisaria dela, mas até agora não me foi útil. Vá, junte-se aos seus companheiros na dianteira. Ficaram felizes em vê-lo de pé. Eu vou para a retaguarda, conversar com nossa amiga de armas.