Raccoon City, 26 de Setembro de 1998…
Sentada na borda do terraço do pequeno edifício da Raccoon Press, Anne encarava em silêncio o pandemônio abaixo. Ela tremia, abraçando os joelhos, enquanto lágrimas escorriam de olhos vermelhos e inchados. Raccoon era uma cidade bonita, pacífica e, ao mesmo tempo, bem desenvolvida; mas agora tinha se transformado no inferno. A cidade fedia a podridão e doença. Cheiro de carne queimada, decomposta e pustulenta impregnava o ar em todas as direções. A maioria das ruas estavam bloqueadas por carros destruídos, construções que colapsaram ou incêndios que pareciam sobrenaturais – chamas do próprio inferno que nunca enfraqueciam. Gritos, gemidos, uivos, tiros, sirenes e outros ruídos estranhos e inumanos mesclavam-se em um caos sonoro, mas nada se comparava ao espetáculo bizarro de antropofagia. “Foi estabelecido que pessoas que morreram recentemente estão retornando à vida, e cometendo atos de assassinato”. Ela lembra de ter rido quando ouviu o homem do noticiário dizer isso na televisão a poucos dias atrás, indignada com os absurdos que os jornalistas estavam dispostos a dizer em troca de audiência. Agora tudo o que ela queria era poder voltar atrás e deixar a cidade a tempo.
O cansaço era esmagador, tanto físico quanto emocional – sem contar a fome. Depois de quase quatro horas, estava claro que aquele sinal enorme de “Socorro” feito com tinta branca não iria adiantar nada. Os helicópteros transportavam soldados, policiais e alguns pareciam jogar enormes capsulas pelas ruas – suprimentos, talvez? – mas nenhum deles parecia preocupado em evacuar os civis; ao menos não naquele setor da cidade. Não havia outra maneira. Se ela quisesse escapar daquele pesadelo, ela teria que correr dos monstros, furar algum bloqueio e ir para muito, muito longe.
Ela ergueu-se vagarosamente, removendo os sapatos de salto – com um deles já quebrado – assim como o avental de garçonete que ainda estava usando. Entre os mortos que caminhavam e devoravam os desafortunados, ela pôde ver, não muito longe do edifício, o corpo de um policial caído com uma escopeta sobre o ombro.
– Foda-se – falou. – Não vou morrer aqui. Me recuso a morrer aqui.
Ela sabia que seria perigoso desobstruir a porta que dava para a escadaria, mas ela não podia mais esperar por ajuda – provavelmente morreria de fome antes que alguém a encontrasse. Tinha sido difícil passar por aqueles monstros malditos e chegar até lá intacta, mas ela precisava arriscar.
– A arma não está longe… e não é possível que não haja mais nenhum veículo que ainda funcione.
Anne começou a remover todas as vigas que bloqueavam a porta, pegando para si a menor e mais leve – uma arma improvisada contra os zumbis até que pudesse colocar as mãos na escopeta. Sua sorte pareceu melhorar. Os mortos que a perseguiam foram atraídos por algo ou alguém, já que não se encontravam mais lá. Ela desceu a escadaria devagar para não fazer barulho, sentindo o frio do metal nos pés descalços, a tensão aumentando e os batimentos cardíacos tornando-se novamente irregulares. Foi quando notou que os zumbis ainda estavam lá embaixo, mas estavam caídos, imóveis… A cabeça de cada um deles estava aberta. Um falatório abafado vinha da sala ao lado, mas ela não conseguia entender o que estava sendo dito. Mesmo com sobreviventes ali, algo em Anne disse a ela para tomar cuidado, para não correr desesperada em direção a eles. Descendo furtivamente, ela escorou-se na parede, espiando pelo canto do olho. Eram soldados com roupas negras e máscara de gás – soldados que ostentavam a insígnia da Umbrella em seus uniformes.
– Estamos a quinhentos metros do objetivo – falava uma mulher para os outros dois, enquanto apontava para uma pedaço de papel que parecia ser um mapa. – Devemos nos certificar de exterminar todas as testemunhas, e então plantar os explosivos nestes pontos…
A frase “Exterminar todas as testemunhas” fez o coração de Anne acelerar ainda mais. Ela foi sábia em não se revelar. Ela queria fugir de lá o quanto antes, mas eles estavam entre ela e a saída.
– Tudo bem, mas e quanto aquele maldito? Conseguimos despistá-lo? – perguntou outro dos soldados.
– Acredito que sim. Aqueles mercenários apareceram na hora certa. Foi a distração que precisávamos.
– Espero que tenha sido o suficiente. Estou com pouca munição e ainda falta muito para alcançarmos o próximo ponto de reabastecimento.
Anne recuou. Não havia como passar por ali sem ser vista. Ela deveria procurar uma saída nos fundos ou uma janela que fosse baixa o bastante para ela saltar. Ela não podia de forma alguma alertar aquelas pessoas da sua presença, mas isso falhou totalmente quando um dos vagantes, ainda levemente ativo, agarrou o tornozelo dela, gemendo debilmente. Ela gritou de forma alta e estridente, golpeando várias e várias vezes a cabeça dele, com toda a força que podia, até que se tornou uma pasta irreconhecível. O monstro morto-vivo não teve tempo de fazer nada contra ela, mas ela não estava mais oculta ali.
– Ela nos ouviu. Acabem com ela! – a mulher do grupo disse.
Anne virou-se e viu armas apontadas para ela. Ela congelou, prendeu a respiração e sentiu as pernas perderem a força, e naquele instante entre a vida e a morte a porta da frente explodiu junto com o portal e parte da parede. Um homem careca, com um grande sobretudo verde escuro avançou pela sala a passos pesados. Pelo o que Anne pôde ver, ele tinha três metros – ou quase isso. Seus passos faziam o chão tremer e seus olhos eram sinistros.
“Não é humano…”
Os soldados gritaram em pânico, concentrando o fogo na criatura que não parecia se abalar com nada e continuava avançando. O corpo de Anne começou a formigar, a vista a escurecer e sua audição a ficar abafada; os sons dos tiros e gritos pareciam agora muito distantes, e a última coisa que ela viu claramente antes de perder a consciência e ir ao chão foi a criatura arremessando a mulher contra a parede com uma investida.