Que o mais simples fosse visto como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente
Aisha estava em Japi havia quase um mês e muito do que precisava ser feito para proteger a divisa do caern avançara, graças a ela. Com paciência e determinação, Aisha havia despertado espíritos antigos, aqueles que até então estavam em silêncio na fronteira, criando, com a ajuda deles, um sistema de vigilância espiritual. Na escola que frequentava, convenceu a professora de geografia a adotar, no próximo bimestre, um metódo de avaliação que envolvessem seminários apresentados pelos alunos, para a conscientização ecológica.
Mas o mesmo não se podia dizer de seus antigos companheiros. Alec O’Brien, o Ahroun Fianna, já não se encontrava ali para protegê-los. Ele havia se afastado desde o primeiro dia, patrulhando o caern à sua maneira, e logo que pôde, aceitou o chamado de Golgol Fangs-First para lutar na Amazônia. Mariele Hoffmann, por outro lado, escolhera a humanidade, voltando-se para uma vida tranquila na fazenda ao lado de sua filha, renunciando aos laços com a Nação Garou e renegando sua própria natureza. Helena Fontelles, que prometera à Aisha proteger a divisa ao seu lado, partira em uma manhã qualquer, dizendo que visitaria um parente na cidade. Nunca retornou, e só muito depois Sopa-Quente contou que Helena decidira voltar para sua cidade natal.
Quando Thea Vilhelmsen voltou da capital com Rudá, trouxe com ela uma fagulha de esperança, que logo foi extinta. Antes que pudesse instalar os equipamentos adquiridos para o caern, Thea fora convocada para auxiliar a matilha de Miraci “Pedra-Molhada” em uma missão estratégica. Cada ausência trazia em Aisha um novo vazio, e agora, de fato, ela estava só. Não só o peso do território recaía sobre seus ombros, mas também o da solidão, um fardo difícil para quem nasceu e foi criada para viver em matilha.
No entanto, Voz-do-Caminho, um Peregrino Silencioso da seita, havia trazido uma notícia que dava um ar de mudança. Ele informou que novos Garou chegariam ainda hoje, enviados para ajudar nas questões da divisa de Bom Jesus da Pirapora. E era ela, Aisha, que devia recebê-los no bangalô e contar sobre a extensão dos problemas da região, bem como decidir se os Tecelões do Cair da Noite continuaria a existir ou se aquela união seria iniciada pela criação de uma nova matilha.
Quando Anahi passou pelo seu ritual de passagem e escolhei e foi aceita pelo misericordioso Unicórnio em vez da misteriosa Uktena, Sua escolha para Moacir "Sombra-da-Castanheira", alfa da seita Guardiões do Japi, fora uma desilusão. Para ele, todos os indígenas deveriam se unir sob o manto de Uktena, que, aos seus olhos, representava uma resistência pura e genuína ao avanço do branco colonizador. A visão de Moacir era rígida, incapaz de perceber que a cultura indígena era diversa e plural, composta por um povo heterogêno, de diferentes caracteristicas, personalidades e objetivos.
No entanto, o tempo havia mostrado o valor da decisão da jovem theurge. Como Filha de Gaia, Anahí encontrou mais facilidade para dedicar-se ao seu povo, distanciando-se das intrigas do caern e canalizando sua energia para as áreas rurais da serra. Os moradores a receberam de braços abertos. Embora a ajuda que ela oferecia nunca fosse paga em dinheiro, gestos de gratidão e pequenos mimos em bolos de fubá, queijos frescos e calor humano eram frequentes.
Foi em um dia inesperado que Anahí recebeu o convite. Uma reunião indígena, aberta a garou e outras raças metamórficas, iria acontecer. Quando chegou ao local, viu pela primeira vez tantas faces de seu povo, garou, bastet, parentes, humanos indigenas e descentes de indigenas, e xamãs. Todos reunidos com o mesmo propósito: resolver uma cisão inquietante se formava entre eles.
A divisão era clara. De um lado, Amondawa Devorador-de-Homens, que defendia a expulsão dos estrangeiros da serra. Ele alertava que aqueles que chegavam como "amigos" não tardariam a se revelar inimigos, sedentos pela posse das terras sagradas de Japi. Do outro lado, um grupo, liderado por Potira, reconhecia os perigos da presença estrangeira, mas aceitava que sua ajuda era necessária. “Somos poucos”, insistiam.
A discussão inflamou-se, e vozes exaltadas reivindicaram os direitos ancestrais sobre não apenas a serra, mas toda a cidade, até mesmo o estado. Sussurros de vingança ecoaram, dizendo a resposta para o genocídio indigena cometido séculos atrás devia ser um novo genocídio contra a população de Bom Jesus de Pirapora. As palavras tornavam-se mais acaloradas, até que a voz grave e firme de Moacir "Sombra-da-Castanheira" silenciou o tumulto.
Moacir “Sombra-da-Castanheira” | - Por mais que me desagrade, é evidente que sem os estrangeiros não poderemos manter nossas raízes de pé. Eles continuarão a ser bem-vindos, mas precisamos preservar nossas tradições e mostrar que não somos frágeis. Conviveremos, sim, mas de igual para igual, sem abrir mão de quem somos. |
Moacir “Sombra-da-Castanheira” | - Anahí, que representa essa união entre duas culturas, deve assumir a defesa da divisa de Bom Jesus de Pirapora. Assim, garantiremos que nossas tradições não serão abandonadas, mas também não nos isolaremos ao ponto de perecer. Isso satisfaz você, Amondawa? |
Bom Jesus de Pirapora era uma cidade de atmosfera serena, localizada entre montanhas e à beira do Rio Tietê. O ritmo da vida era lento e os dias pareciam passar devagar. Os habitantes eram acolhedores e mantinham tradições locais com devoção.
No centro comercial, a basílica do Bom Jesus dominava a paisagem, com suas torres que podiam ser vistas de longe. Dentro da igreja, os fiéis rezavam em meio ao cheiro de incenso e ao brilho dos vitrais coloridos que refletiam a luz do sol. A praça principal ficava duas ruas atrás da basílica e era o ponto de encontro dos moradores, com barracas de feira, bancos antigos e conversas tranquilas. Em frente a praça, estava a pequena rodoviária de Bom Jesus de Pirapora, onde Aleto, Leonardo, Hermes, Ava e Brianna aguardavam a carona que os levaria ao caern.
Esperar por uma carona na rodoviária de uma cidade não era algo típico entre os garou. Aqueles mais experientes logo souberam a razão: o caern não mantinha uma Ponte da Lua ativa. Por isso, a única opção era seguir pelo transporte comum, como os humanos.
Quando o som de um motor cansado começou a ecoar ao longe, uma Kombi envelhecida, com a pintura desbotada e pequenas cicatrizes de ferrugem que pareciam contar histórias de muitas jornadas, se aproximou parou suavemente ao lado deles. A porta lateral abriu-se lentamente, revelando um senhor de idade, de olhar sereno e expressão calorosa. Ele desceu com certa tranquilidade e fez um gesto leve, chamando-os para embarcar.
Sopa-Quente | - Sou Sopa-Quente, prazer em conhecê-los - disse com uma voz baixa e compassada, o tom suave transmitindo uma calma quase acolhedora - Venham, entrem com calma. Esta velha amiga já me levou a muitos lugares. Pode não parecer, mas ela ainda aguenta muita estrada. |
Aos poucos, os garou se ajeitaram em seus lugares, e Sopa-Quente voltou ao volante, girando a chave com um cuidado quase cerimonial. O motor roncou de leve antes de encontrar um ritmo mais constante, e a Kombi começou a se mover pela estrada de terra. Sopa-Quente dirigia com uma notável tranquilidade. Enquanto avançavam, ele comentou, com um tom leve e nostálgico:
Sopa-Quente | - Ah, a estrada até a divisa tem seus segredos. Cada pedaço dela tem uma história... O bom é saber escutar o que o caminho tem a nos contar. Às vezes, o que se encontra na paisagem nos revela o que nos espera.. |
Em certo ponto do caminho, eles passaram por um grupo de romeiros que retornavam a pé da cidade. Homens, mulheres e crianças com terços nas mãos, olhares cansados e sorrisos pacíficos caminhavam em direção contrária. Alguns faziam breves acenos para a Kombi, e Sopa-Quente retribuía com a cabeça.
Sopa-Quente | - Romeiros sempre sabem onde encontrar fé. Têm um coração grande... Levam a paz com eles, sabem? Bom ver que ainda há quem caminhe com um propósito, mesmo que seja apenas encontrar um pouco de luz. |
Sopa-Quente | - Chegamos, meus jovens - disse, apontando para o caminho de pedras - Não vou subir com vocês. Minhas costas já não são como antes, mas aí está sua nova casa. |