A pequena capela erguida por bandeirantes trezentos e poucos anos antes havia estabelecido o solo sagrado onde se erguia a majestosa Catedral de Nossa Senhora da Luz da Boa Viagem. Afora o Santuário Nacional, em Aparecida, aquela era uma das maiores construções dedicadas à fé católica no Brasil e reunia caravanas de fiéis durante todo o mês de abril, quando a Festa da Padroeira de Bela Vista atraía centenas de turistas diariamente.
Porém, era agosto. Uma noite fria de um agosto frio e feio. A imponente Catedral estava deserta como um mausoléu de profetas e santos quando o grupo se aproximou. Com familiaridade, Ace conduziu os novos Caçadores pelos corredores da construção centenária, sem esperar que Dom Inácio tomasse a frente. O loiro estava calado, soturno, e seguiram sem que os perturbassem até um pátio interno, com um pequeno e alegre chafariz em um pátio de pedra.
Dom Inácio estivera ali algumas vezes, em contemplação, buscando conectar-se à divindade. Mas jamais havia suposto que pudesse haver uma passagem secreta abaixo do chafariz - revelada ao puxar o cajado do Pastor, girar o seio direito da Ninfa e torcer o pescoço do quarto carneirinho. Um chafariz bem árcade e uma sequência bem macabra.
Descendo por uma escada em espiral que mergulhava na escuridão, os Caçadores deram com um túnel escavado na rocha que sumiu completamente quando a passagem acima se fechou. Sem nenhuma luz, Ace os conduziu à frente, segurando Ana pela mão:
- Deem as mãos. O caminho não é longo. - a voz dele estava séria e o Caçador mal esperou que os demais se preparem-se antes de puxar a garota pelas trevas à frente.
Não havia nada em que tropeçar, mas era incômodo andar às cegas. Ainda mais quando o homem que os conduzia parecia enxergar perfeitamente naquele breu denso. Se o caminho era de fato curto nenhum deles poderia dizer. O tempo passava e voltava sobre os Caçadores na escuridão do túnel, alongando-se e curvando-se, como a eternidade. Mas então eles viram: havia uma luz no fim do túnel. Uma clareira? Não. Um jardim. Uma casa com varanda e paredes de pedra. Luzes acesas. Uma mulher esguia na casa dos cinquenta anos os aguardando com um sorriso no rosto, vestida em um blusão de lã bem clarinho e calças de couro surradas e macias.
Qual não foi a surpresa de Dom Inácio ao perceber que os olhos afiados e inteligentes que se fixavam nele eram os de Irmã Graça!
A freira e o Caçador se cumprimentaram como parentes cheios de saudades que não se vissem há muito tempo. Um cheiro delicioso de carne assada vinha do interior da casa. E todos foram convidados a entrar, encontrando um ambiente aconchegante e simples - típico das casas de interior, das casas de vós, com seus sofás confortáveis e lareiras crepitantes. Para completar a cena familiar, havia uma criança dormindo no sofá, com um biscoito caseiro meio comido firmemente agarrado à mãozinha pequena que repousava no peito. Um menino loirinho de cabelos atrapalhados, com não mais que dez anos. Quando Ace o carregou no colo, sumindo pelo corredor, a semelhança entre os dois ficou mais que nítida.
- Noite difícil? - a freira tinha olhos escuros, ferinos e ágeis - Vocês têm os olhos de quem viu o Demônio ganhar asas, uh? Esse símbolo está errado, filho, você deveria estar marcado pela Cruz. - a mulher apontou para o pulso de Gerson e então fez o Sinal da Cruz sobre a testa - Assim, percebe? Como o Diego. Ah e eu vejo que você foi arrebanhado, Inácio. A sua bênção, padre, por falar nisso. Mas, se depender de mim, essas Marcas nunca estarão sobre você. Sobre nenhum de vocês. Os Sinais da Consagração são u--- - vendo Ace retornar para a sala, a freira se calou, encarando o Caçador. Então deu de ombros - Vou cevar o mate. E ver o assado. Comemos assim que vocês cuspirem esse porco-espinho que abocanharam.
A mulher deixou a sala rumo à cozinha - era possível ver parte do cômodo dali, cantarolando algo sobre um cavalo indomável. Ace então se sentou em uma poltrona que parecia já ter o formato do Caçador e começou:
- A primeira coisa que vocês precisam saber é que a Caçada Selvagem é a morte. Todos os Caçadores estão mortos, desde o dia em que se rompe o Véu. Não há lugares seguros. Não há esperança. Só agonia, dor e morte no fim. A Caçada é inglória. Vocês não serão sequer lembrados, nunca serão heróis. A longa noite vem e devora até sua alma. Não há redenção.
O tom do homem era centrado, quase calmo, mas seus olhos flamejavam e a cruz de sangue sob a pele da testa parecia pulsar levemente.
- Por que vocês foram convocados? Bem, vocês não foram. Olha, o Véu se partiu e vocês viram A Verdade. Eu ou Mel estávamos lá, por coincidência. É isso. Vocês poderiam ter ido correndo pro colo de um Noturno e implorado para que ele desse a vocês a imortalidade hollywoodiana que "Entrevista com o Vampiro" ou "Crepúsculo" venderam. Vocês poderiam ter se trancado em casa, ou mudado pra outro país, tentado fugir ou sei lá. Mas vocês ficaram. E um grande mal se levantou e nós, Caçadores, precisamos nos unir. Então chamamos vocês. Quanto mais de nós juntos, mais chances temos de fazer alguma coisa. Quantos mais conseguirmos treinar e Consagrar, melhores nossas chances. É só.
O homem fez uma pequena pausa, ouvindo a cantoria da mulher na cozinha. Agora o cavalo tinha sido domado e uma moça andava nele, dizia a música, como se fosse um pônei.
- "Isto lhe será como sinal em sua mão e memorial em sua testa, para que a lei do Senhor esteja em seus lábios". Êxodo. Os Sinais da Consagração foram ensinados por Deus a Moisés. Vocês se lembram da história sobre marcar os batentes das portas com o sangue do cordeiro para que as pragas do Egito não atingissem o Povo de Deus? Pois é. Conhecimentos gnósticos e cabalísticos pra cá e pra lá - eu não passo de um gaúcho grosso e ignorante que não sabe nada dessas coisas - mas funcionam. Você recebe os Sinais e o bicho-papão tomba com três tiros, em chamas azuis e desespero. Essa é a minha parte, como Exorcista... - Ace indicou a cruz de sangue abaixo da pele da testa - ... mas tem mais. Muito mais. A questão é, Victor e todos vocês, nada vai protegê-los. A Consagração pinta um alvo no meio da sua cara, inclusive. E, por mais que dê uns "poderes" interessantes, não torna ninguém adivinho. Então, não tínhamos como saber que a Carolina tinha sido morta por um Noturno. Não tínhamos como saber que haveria um ataque. Mas, e eu quero deixar isso muito claro, vocês deveriam estar preparados para morrer. Sempre. Todos os Caçadores estão mortos. E não tem explicação, palestra, treinamento, Consagração ou o caralho que for que possa salvar alguém nessa sala. Infelizmente. Eu, de verdade, lamento. Vocês mereciam mais que isso. Meu filho merecia mais que isso.
Ace se recostou contra o poltrona e passou as mãos pelos cabelos. No mesmo instante, Irmã Graça voltou à sala, entregando ao Caçador uma cuia de chimarrão com um sorriso maternal no rosto. E foi ela quem emendou:
- Muito bem. Imagino que vocês tenham perguntas.
OFF: Postagem liberada! Depois eu vou editar o post para incluir imagens bonitas xD~