Dom Inácio decidiu que não se consagraria nem mesmo temporariamente, o que deixou Mayane e Ana responsáveis por desenhar os símbolos registrados no Manual sobre todos os desacordados. O padre ajudou como pôde, com sangue e lágrimas, mas o trabalho era lento e difícil: havia muitos detalhes que precisavam ser reproduzidos à perfeição, e Guilherme mantinha um olhar atento sobre ambas as Profetisas, ajudando-as a apagar os erros com álcool antes que a tinta da caneta permanente secasse. Ao final, a sala - cujas janelas haviam sido fechadas por Ace antes de partir - cheirava como um ambulatório hospital: álcool, sangue e nervosismo.
Doc foi a primeira a ser marcada por Mayane, ficando livre para investir seu tempo em achar comida (que mesmo fria estava deliciosa), cuidar do estado geral dos companheiros e trocar mensagens com seu Mentor. A vida começava a se descortinar cada vez mais como um apanhado de eventos sem sentido: não apenas em Bela Vista, mas em diversas partes do globo, pessoas haviam desmaiado e/ou sido assoladas por pesadelos naquela noite. Seu Mentor trabalhava para obter uma explicação, e trocava suas impressões com Maria Ivri. Aparentemente, o epicentro do evento era na Índia, onde bilhões de pessoas haviam sido nocauteadas para sonhos malignos - mesmo as que conseguiram permanecer acordadas. Relatos de acidentes automobilísticos e ferroviários ao redor do mundo inundavam os noticiários, o Mentor de Doc dizia, e alguns casos de assassinatos brutais, suicídios e crimes bárbaros haviam sido divulgados pela mídia de massa.
Uivos. Uivos na noite.Ana e Mayane apressavam os desenhos, com ajuda de Dom Inácio e Guilherme. Mas cobrir os dois antebraços de cada companheiro com os símbolos corretos era uma tarefa árdua. Tudo piorava na hora de gravar o
sinal sobre o coração: era preciso remover as roupas dos desacordados, desenhar, esperar a tinta da caneta secar e então tornar a vesti-los, um a um. Enquanto Ana e Mayane marcavam as outras mulheres, Guilherme se virava de costas, e fazia com que Dom Inácio fizesse o mesmo:
- Mesmo sendo padre, seria falta de respeito com as gurias, não é? Se o senhor fosse médico, seria outra história... - o menino tirava aqueles momentos para conversar com Dom Inácio, perguntando coisas acerca de passagens da Bíblia (ele parecia ter predileção por Daniel na cova dos leões) e da vida eclesiástica, e contando coisas sobre ter oito anos sendo da Família da Paixão -
Acho que a pior parte foi deixar de esperar o Papai Noel, sabe? A ideia de que se algo ou alguém invade sua casa a noite, só trará a morte como presente. Eu gostava do Natal. Papai ainda monta uma árvore enorme, mas acho que o cesticísmio da mamãe acabou me contagiando... É cesticísmio que fala, né?Um a um, os Caçadores foram acordando. Mas já era passado das duas da manhã quando todos puderam sentar e conversar. A recuperação milagrosa de Antônio parecia ser o mais inexplicável. Mesmo o agente de Inteligência não sabia dizer o que havia acontecido para que os ferimentos se regenerassem naquela velocidade. Ossos quebrados, cortes, hematomas: tudo havia sumido. No lugar, finíssimas cicatrizes branco-prateado, como se a recuperação houvesse acontecido anos atrás. Doc conhecia o segredo daqueles fatos, mas a decisão de falar aos outros sobre as habilidades da Tríade era difícil e cabia somente à médica. Será que os companheiros acreditariam no que ela foi capaz de fazer recitando umas palavras desconhecidas e jogando água sobre Antônio? Será que o padre e a freira veriam com bons olhos o beijo de vômito e a ritualística envolvida?
Mayane e Ana trabalharam arduamente e estavam cansadas. Aqueles que acordavam, vinham com lembranças de um mesmo sonho vívido, onde a Lua de Sangue erguia-se na planície sobre dois adolescentes. Irmã Graça parecia ser a única que não havia compartilhado a mesma visão. Tinha o semblante muito sério e os olhos se voltavam constantemente para Guilherme, mas negou-se a dividir o que viu no reino dos sonhos. Acabou ocupando-se de servir uma ceia noturna para os presentes, enquanto conversava com Dom Inácio na cozinha.
- Os Sinais da Consagração foram ensinados por Deus a Moisés, para que fosse possível distinguir entre todos aqueles que eram do Povo de Deus. As marcas nas portas até hoje usadas pelos judeus em suas casas e sinagogas vêm daí. Assim como o costume de atar fitas do Senhor do Bonfim ao braço, que vemos aqui no Brasil. As marcas deveriam ser gravadas nas soleiras das portas, atadas ao braço e colocadas como frontão entre os olhos. Essa última parte era alegórica: indicando que a Palavra de Deus deveria ser o guia dos fiéis. Tudo isso eu sei que você conhece, Inácio. Pode me passar o pão, por favor? Não, aquele ali. Isso. Obrigada. - fatiando o pão caseiro e organizando as fatias em uma cesta de fibras naturais, a freira continuou -
Porém, o Diário de Alana Rafaela diz: "Veio a mim um Anjo do Senhor, em asas negras como a noite, e falou-me dos Sinais e ensinou-me o caminho da Consagração. Guiou-me o Anjo Negro para que me ungisse um Assassino Noturno, pois Deus marcou Caim, primeiro assassino, e pelo Sangue de Caim os Sinais devem ser marcados. Assim revelou-se o Mistério do Nome da Espada. E ao pó têm retornado os Assassinos Noturnos, em Chamas de justiça e vingança." Eu costumava dormir com o Diário na minha mesa de cabeceira. Poderia citar trechos inteiros... mas isso não vem ao caso. Entenda, Inácio. Oito gerações de Caçadores da Família concordam com a conclusão a que o Manual chegou: o Anjo que ensinou à Alana Rafaela, nossa matriarca, o Ritual da Consagração foi o mesmo que revelou à ela o Nome da Espada. A espada que hoje é o fardo de Mel. Sollaris, a Lâmina de Shai'tan.Dom Inácio havia visto a espada no Museu. Mel tinha degolado a criatura que os atacava, e depois transformado a carcaça sem cabeça em pó ao cravar a lâmina no coração do monstro. Mas o que o padre não sabia é que - se o que Irmã Graça disse era verdade - aquela era a Espada do Inimigo, Lúcifer, o Anjo Caído.
Entendeu a preocupação de Irmã Graça quanto aos efeitos da Consagração. Apesar de serem as palavras de Deus, seu uso havia sido modificado pelo Diabo, e ensinado a uma jovem moça no interior de Portugal, em uma época em que não havia muitas alternativas de segurança pública ou autoridades fortes que pudessem defendê-la e à sua família. Talvez tenha parecido uma boa ideia na circunstância, assolada por demônios sedentos de sangue, buscar o acolhimento sob as asas negras de Shai'tan, o Inimigo. Mas e os demais? Oito gerações da Família da Paixão, com a alma Consagrada.
Consagrados a Deus? Ou ao Diabo?Enquanto isso, Ana folheava o Manual, encontrando seções inteiras dedicadas ao arco e flecha (muito comum nas primeiras gerações da Família). Havia registros de paralisantes que funcionavam contra vampiros e/ou lobisomens, substâncias que ampliavam o dano contra as criaturas das trevas, modelos de seteiras de flechas mais eficazes para perfurar e até mesmo duas páginas dedicadas apenas ao empalamento com arco e flecha.
Lendo o Manual, a garota descobriu que empalar um vampiro não iria matá-lo, como no cinema, mas sim torna-lo imóvel como uma estátua. Isso poderia ser feito com qualquer coisa, não era necessário que o objeto usado como estaca fosse de madeira. A única exigência é que atravessasse/se alojasse no coração. Havia registros (mais modernos) de Exorcistas que alegavam ser capazes de empalar com um tiro de revólver ou pistola. Ana não saberia dizer. Quase desejou que apenas Profetas tivessem feito anotações no Manual.
A ceia da madrugada foi servida no exato instante em que Mel retornou à casa. Havia uivos cortando o frio da noite de tempos em tempos, e a Caçadora foi primeiro até o filho, depois até a tia e então se voltou para o grupo. Contando. Ela estava conferindo se estavam todos ali. Todos vivos.
Havia pão caseiro, queijo meia-cura, manteiga e presunto cru sobre a mesa, junto com pequenos e rubros morangos silvestres, biscoitos de nata e geleia de amora. Chá mate, café, leite e mel completavam a pequena ceia. Mel da Paixão sentou-se à mesa com Guilherme no colo, e já começava a dar os prognósticos quando Ace chegou.
E ele estava péssimo.O loiro estava empoeirado dos pés à cabeça, as roupas amassadas, e tinha um olho roxo quase fechado devido ao edema. Guilherme chegou a exibir uma ligeira preocupação, mas Mel abraçou o menino mais forte, gargalhando.
- Nenhuma costela quebrada dessa vez? Acho que Bedwyr pode ter finalmente se encantado pelo seu charme gaúcho.Ace rosnou qualquer coisa em resposta e foi lavar as mãos e o rosto para sentar-se a mesa. Então, começaram a explicar o que sabiam.
A casa no Jardim podia se mover entre as dimensões, vagando entre a Penumbra (região mais próxima da Umbra), o Sonhar e o Plano Material. Quando estava no mundo, localizava-se em uma área de proteção permanente (reserva florestal) que abrigava a nascente do Rio Comprido. Esta APP era território dos lobisomens em Bela Vista, um lugar que as Bestas-da-Lua entendiam como sendo sagrado, por ser próximo à emanação da Mãe-Natureza (Wyld). A esse lugar, davam o nome de caern. O centro do caern abrigava diversas matilhas, cada uma com seu alpha, além da cúpula da Seita (o conjunto das matilhas). Este centro ficava cerca de 7km a norte dali.
Naquele tempo, havia boa relação entre a Família (da Paixão) e os Garou (nome pelo qual os lobisomens se tratam). Mel e Ace coletaram juntos três informações importantes:
- O evento atingiu os Garou com ainda mais intensidade que os humanos, havendo relatos chegando de diversos caern sobre o "Despertar de Antélios". A Estrela Vermelha que brilha intensamente no céu da Umbra e do Sonhar recebe esse nome entre os lobisomens, e é um sinal de mau agouro - um dos prenúncios do Apocalipse.
- Os Garou concordavam em cooperar com o grupo reunido na casa do Jardim, desde que nenhum humano pisasse no centro do caern e nenhuma profanação chegasse às matas virgens pelas mãos dos novos Caçadores. Igualmente, todos deveriam se comprometer a honrar o totem da Seita, caso o Espírito do Lobo Guará decidisse por abençoá-los.
- Um outro sinal do Apocalipse havia se concretizado em Bela Vista naquela noite, o que os Garou entendiam como sendo a causa de todo o pesadelo ao redor do mundo. O Impuro Perfeito, filho da quebra do Primeiro Verso da Litania (lei sagrada dos lobisomens que proíbe que os Garou procriem entre si), havia partido para encontrar o Coração da Wyrm. O que exatamente isso queria dizer, Mel e Ace não souberam precisar, porque o Impuro Perfeito era um assunto delicadíssimo entre os Garou (razão pela qual Ace havia levado uma surra de um dos alphas, em que pese a boa-vontade existente entre Caçadores e Lobisomens naqueles tempos). Mas, uma coisa era certa: havia uma Cria das Trevas junto com o Impuro Perfeito.
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- E, a menos que eu esteja enganada, esta é a trilha que conduz à Última Filha de Eva. Mencionada na Tábula de Osíris. Outro sinal do Fim do Mundo. - Mel embalava Guilherme no colo, enquanto comia o que podia e falava -
Precisamos chegar até eles. Porém, não temos como localizá-los. E é aí que vocês entram. Os pais do Impuro Perfeito partiram em busca do filho. Um para o Sonhar e o outro para a Umbra. Vocês devem se dividir em dois grupos, um para cada objetivo. Localizem os pais do Impuro Perfeito e consigam ao menos três gotas de sangue de cada um. E então retornem para cá. Com o sangue dos pais, emularemos o sangue do filho, e assim poderemos obter a exata localização do Impuro Perfeito. Mas, cuidado! Isso tem que ser feito com a máxima discrição. Se alguma Besta-da-Lua desconfiar da nossa intenção de encontrar o filhote, a trégua entre nós será rompida e eles poderão invocar uma caçada contra nós. E vocês não querem que isso aconteça.A Caçadora levantou-se da mesa, levando o filho adormecido nos braços para o quarto, enquanto Ace completou:
- Enquanto isso, Mel e eu vamos atrás de Ana Rita. Só espero que ela não tenha se tornado outra bússola, como a pobre Carolina... - o Caçador havia colocado um bife cru sobre o olho inchado, o que dava a ele um ar entre feroz e bobo.