Padre Inácio
ORA ET LABORA
"Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente!
Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca."
Apocalipse 3:15,16
Depois de anunciar que não iria se consagrar, Dom Inácio tentou contribuir ajudando Mayane, Ana e o pequeno Guilherme com os desenhos. O padre não costuma desenhar e nem tocar muitas pessoas diferentes, então juntar essas duas coisas era inédito, mas já estava acostumando com as novidades daquela noite peculiar. "Acordei padre, e agora nem sei mais o que sou".
Ter uma criança no ambiente, de certa forma deixava o clima mais tranquilo. E o garoto parecia gostar de Inácio fazendo várias perguntas e comentários, alguns um pouco avançados para sua idade. Guilherme parecia ser um garoto maduro, e como não seria? Deve ser muito difícil ter uma infância comum vivendo naquela realidade, Inácio se compadeceu dele, que também não havia escolhido estar naquela situação. O padre com um sorriso respondia as dúvidas da forma que podia em uma linguagem simples.
- CeticisMO. É assim que se diz. - falou dando ênfase na última silaba em tom "professoresco". - Significa mais ou menos que você duvida das coisas que te falam ou acreditam.
Ao explicar para o garoto mais uma vez um questionamento quanto suas próprias atitudes naquela noite surgiu em sua mente. Por algumas vezes Dom Inácio não teve fé nas suas crenças e ainda duvidou das histórias que os outros contavam. Ele se sentiu em cima do muro. E isso o lembrava de uma parábola que vez ou outra usava em seus apelos:
"Havia um grande muro separando dois grandes grupos. De um lado do muro estavam Deus, os Anjos e os Santos. Do outro lado do muro estavam Satanás, seus demônios e todos os que não servem a Deus. E em cima do muro havia um jovem indeciso que estava em dúvida se continuaria servindo a Deus ou se deveria aproveitar um pouco os prazeres do mundo. O jovem indeciso observou que o grupo do lado de Deus chamava e gritava sem parar para ele:
- Ei, desce do muro agora... Vem pra cá!
Já o grupo de Satanás não gritava e nem dizia nada. Essa situação continuou por um tempo, até que o jovem indeciso resolveu perguntar a Satanás:
- O grupo do lado de Deus fica o tempo todo me chamando para descer e ficar do lado deles. Por que você e seu grupo não me chamam e nem dizem nada para me convencer a descer para o lado de vocês?
Grande foi a surpresa do jovem quando Satanás respondeu:
- É porque o muro é MEU!"
Era uma historinha simples que ensinava que não escolher também é uma escolha. E mais uma vez seu corpo tremeu. Não participar da Consagração mas ajudar nos preparativos era hipocrisia. O padre ainda não havia decidido qual lado do muro ele escolheria. Uma vida quente de clérigo com suas crenças antigas, ou uma vida fria de Caçador enfrentando essa nova realidade. Era melhor decidir logo se seria frio ou quente, porque talvez a mornidão seria vomitada.
Ao ver que Irmã Graça se dirigiu a cozinha, Inácio a acompanhou. Aquela noite ele já havia tentado perguntar coisas para ela, mas até então só recebera respostas vagas que traziam mais dúvidas do que antes. Talvez ele quisesse que ela apenas decidisse por ele, como alguns fiéis de sua diocese faziam. Enquanto estavam na cozinha o padre a ajudou com os preparativos da ceia noturna, e ouviu com atenção toda a história que ela lhe contou.
- Irmã. Me responda, por favor. Como você consegue viver essas duas vidas? Elas não são o oposto? Manter a fé nas nossas tradições e nas Santas Escritura e enfrentar esses demônios? Você é quente, fria ou morna?
Então voltaram para a sala de jantar e Inácio ajudou a pôr a mesa. Depois de decidir não se consagrar e conversar com a freira, já estava mais aliviado, e talvez seu estômago estivesse pronto para uma refeição mais tranquila. Antes de comer, decidiu tomar a inciativa e apresentar as a tradução porca que havia feito das Tábuas de Osíris, que trouxe do museu:
Quando as neves consumirem a terra
e o [sol] ---------- [como] uma vela ao vento
então, e apenas então, nascerá uma mulher,
a [última] Filha de Eva,
e [com] ela será decidido o ------- -- ----.
E [você] não reconhecerá esta mulher, exceto pela sua marca -- ---,
e ela [confrontará] a traição, o ódio e a dor,
mas [nela] está a [última] esperança.
Depois disso pegou um pedaço de pão caseiro e o mergulhou em uma mistura morna de café quente com leite frio. Já estava decidido. E enquanto comia, pôde ouvir atentamente Mel os comunicar quais seriam as próximas ações do grupo.
- Não quero parecer covarde, mas não sei como eu poderia ajudar o grupo em uma dessas missões, ainda mais sem passar pela tal Consagração. Mas... podem contar comigo.