San Miguel
Noite
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Como era possível amar tanto assim uma mulher?
Victor tinha um revólver em cada mão, e o tambor girava, ceifando vidas. A verdade é que ele tinha deixado de ser um Ranger porque não conseguia mais suportar aquilo. Tinha sangue demais nas mãos. Algo muito precioso e belo havia morrido nele, mergulhado naquele mesmo cheiro de pólvora e sangue. Até que não podia mais atirar. Nem mais um disparo. Estava quebrado, sem rumo, quando chegou à poeirenta San Miguel.
Ainda se lembrava de quando a havia visto pela primeira vez. Ele, um Texas Ranger falido, atracado ao bourbon no saloon da Ruiva Diaba. Ela, a doçura que desabrochava em flor naquela terra esquecida por Deus. Mas Ana não era apenas meiga e delicada: ela era uma mulher inteligente, corajosa e dedicada à sua causa - educar aquele povo, levar a luz do conhecimento para as pessoas. Ele deixou os dias de vagar a esmo pela Federação. Tomou o distintivo que o fazia um pouco mais digno de aproximar-se da professora. Casaram-se no início de maio, já fazia pouco mais de dois anos. Mesmo sabendo que quase não dormiria, Victor se deitava ao lado da mulher todas as noites, para desfrutar do privilégio simples e sagrado de ver dormir quem se ama.
E agora Ana atirava virotes metálicos de besta contra o padre que os havia casado. Ana, que conversava com a Besta-Fera. Ana, que se iluminava ao luar agreste daquelas terras devastadas. Como era possível amar tanto assim uma mulher, a ponto de um homem-da-lei atirar em seus vizinhos, que tentavam se proteger de uma criatura de pesadelos com as poucas habilidades que tinham? Ainda assim, lá estava ele. Um revólver em cada mão. Chacinando os cidadãos que jurou proteger.
Como era possível confiar tanto assim em uma amiga?
Guinnevere deu o primeiro disparo - contra o Padre, que Deus tenha piedade de sua alma - sabendo que a determinação ensandecida de Ana levaria as duas para o inferno. Esse era o destino dos que matavam padres e freiras, não era? O virote de Ana atingiu o peito do pároco, seguido por um tirambaço certeiro da Ruiva Diaba. Às vozes dos homens, que exigiam a morte da Besta-da-Lua, uniu-se o vociferar das mulheres, que das janelas e das portas das casas, gritavam:
- MULHER DIABO! ASSASSINA! QUE O DEMÔNIO CARREGUE SUA ALMA! - as ofensas eram muitas e se mesclavam a um choro que crescia, como uma nota aguda de desespero arranhando a noite dantesca de San Miguel. O corpo do Padre Jeremias caiu com um baque surdo, erguendo poeira em direção às estrelas.
A criatura lupina uivou, disparando em incrível velocidade contra outra casa, de onde atiravam os sobreviventes. Guinnevere viu quando Victor, com uma frieza enregelante nos olhos, deu seus primeiros tiros, derrubando mais alguns. Os rapazes do curtume sangravam no chão. As armas do Sheriff exibiam o tambor giratório, que naquela noite era uma roleta de morte. A ruiva recarregou sua Esquenta-O-Rabo e atirou novamente, acertando em cheio a mulher do ferreiro, que vinha correndo pela principal, com um cutelo na mão.
Tudo por Ana. A professora havia ensinado Guinnevere a ler e escrever com desenvoltura, de manhã bem cedo, na mesa mais afastada das janelas do saloon. Antes de Ana, a ruiva era semialfabetizada, como a maior parte das mulheres de sua época. Agora, lia grandes clássicos, mantendo uma cópia de "O mundo como vontade e representação", de Schopenhauer, sempre por perto, debaixo do balcão do saloon. Para o filósofo, o mundo fenomenal era o produto de uma cega, insaciável e maligna vontade metafísica, do que Guinnevere também tinha certeza.
Tendo nascido e crescido em San Miguel, sempre tratada com ressentimento ou indiferença pelas demais mulheres, a ruiva sabia o que ser filha de uma mulher solteira e crescer sem um pai queria dizer naquelas paragens. Ana era sua única amiga, apesar do saloon sempre lotado dar uma ideia de falsa popularidade. Guinnevere confiava em Ana, moça tão ajuizada e de tão bom julgamento, com seu casamento tão respeitável e sua profissão tão nobre. Confiava a ponto de recarregar sua espingarda e se preparar para novo tiro...
... mas Gerson interveio.
O terror de estar diante do Sete-Peles havia enlouquecido sua ruiva, Dona Ana e o Chefe? Deter as mulheres não foi difícil, mas o homem sabia que não poderia segurá-las para sempre. Lembrou-se de uma história que ouviu certa vez, quando estava preso, lá pelas bandas do Paredão. Um sujeito havia entrado em uma igreja, em uma cidade que havia se vendido ao Diabo em troca de minas de ouro. Todos começaram a se matar, ali mesmo, durante o serviço religioso de domingo. Mas o sujeito era bem treinado - na história, uns diziam que era Ranger, outros diziam que era meio-Apache. Ele matou a todos, sendo o único sobrevivente do massacre. Então, enforcou-se na árvore em frente à igreja. Nenhum homem temente à Deus pisou naquela cidade novamente.
Agora, o Demônio tinha vindo clamar as almas de San Miguel. Gerson não sabia de minas de ouro por ali, mas o padre já estava morto: aquela era claramente uma obra do Diabo. Ana parecia incapaz de reconhecer os vizinhos, os amigos, os companheiros de uma vida toda. Guinnevere e Victor, assim como Adão tinha sido corrompido por Eva, estavam prontos a fazer qualquer coisa que a professora determinasse. E ela trocava palavras com o Sete-Peles. Claramente, Ana havia sido possuída pelo Coisa-Ruim, porque de outra forma não falaria a língua do Demônio. Logo ela, sempre tão doce, sempre tão pura. Gerson lembrou-se do que dizia o ditado: boi sonso, chifrada certa.
Enquanto isso, o homem-lobo continuava em sua matança, movendo-se com rapidez para eliminar um a um os habitantes de San Miguel. E era uma cena brutal, de violência crua, sem beleza ou heroísmo. A criatura era a carnificina encarnada em garras e pelos, presas e músculos, espalhando miolos e entranhas em sua trilha de sangue. O cheiro férreo já se misturava à pólvora e ganhava notas de latrina a cada barriga aberta. O som dos ossos de seus vizinhos e amigos esmigalhados pelo grande homem-lobo causava arrepios a todos.
Exceto Ana.
A professora encarava a realidade de olhos bem abertos. Pela primeira vez. Quem eram aquelas criaturas de pesadelos? A cada vez que acionava o gatilho da besta, sua orações pareciam guiar sua pontaria, que nunca havia sido bem treinada, para disparos certeiros. Guinnevere e Victor a acompanhavam em sua incrível Cruzada, mas Gerson - ah o feroz Deputy de San Miguel! - estava determinado a impedi-los. Ana viu o poderoso lobo branco dilacerar mais criaturas, enquanto Victor - com olhos frios que fizeram acelerar seu coração - disparava contra seres que talvez não pudesse identificar como inumanos.
Será que o marido sabia? Ana ainda não havia contado para Victor, mas por qual razão ele teria atendido tão prontamente ao seu chamado para a luta? Instintivamente, quando impedida por Gerson de continuar a atirar, a professora levou a mão livre ao ventre. Mesmo que fosse preciso derrubar o amigo - humano como ela em meio a um mundo habitado pelos demônios - Ana não se daria por vencida. Conhecia as histórias, do folclore dos colonizadores, trazidas da Europa distante. Assim como conhecia os contos dos índios, e se admirava ao encontrar conteúdos tão semelhantes. Havia criaturas que andavam na noite, raptavam crianças, alimentavam-se delas. Havia criaturas que infiltravam-se nas casas, levavam embora os bebês e deixavam no lugar um Changeling - um duplo, que sugava a vida da mãe aos poucos, prendendo-se com ventosas dentadas ao seio até que a mulher não passasse de uma casca oca e então morresse, abandonando os demais filhos e o marido à própria sorte.
Mas não com ela. Não com o seu bebê.
Ana viu correrem em sua direção criaturas alongadas, em corpos amadeirados e rugosos, longilíneos e muito magros. Devia haver pelos dez ou doze delas, com cerca de dois metros de altura, e olhos negros e malignos como piche. Estendiam os braços para ela enquanto corriam, e...
... não, eram as crianças. As crianças de San Miguel. Não eram?
Victor, Guinnevere, Ana e Gerson se viram cercados da turba chorosa das crianças de San Miguel. Os olhos assustados deles, as expressões confusas e aterrorizadas, o choro e as súplicas bateram diretamente numa parte muito primitiva de cada um dos quatro: era preciso preservar as crianças. Pelo menos três se agarraram às pernas de cada um, enquanto quatro circundavam Ana. Eram seus alunos. Ela havia ensinado àquelas crianças a ler, escrever, desenhar e até mesmo a orar. Ela havia cantado para elas e contado histórias, consolado quando estavam tristes e celebrado suas vitórias.
- Filha de Luna, CUIDADO! Os Selvagens desejam a criança! Filha de L--- - a fala antes clara do homem-lobo derivou para um rosnado sem sentido que Ana não podia compreender mais. Algo dentro da professora continuava gritando sobre o perigo em San Miguel e que deveria proteger seu bebê a qualquer custo.
Mas as crianças a cercavam, com olhos que imploravam proteção. Elas se agarravam às suas saias e passavam as mãos em sua barriga, chorando e pedindo:
- Salve-nos, Tia Ana! Precisamos fugir!