Chovia e ouvia os tambores. Essa noite, os tambores iriam tocar a noite toda. Aquele som o incomodava, as batidas estavam descompassadas e a pele do tambor não estava suficientemente esticada. Era um som de guerra, para se misturar com os passos pesados e tilitar de ferro, mas com o barulho da chuva, não combinava.
Isso era importante, mas não era tão importante quanto o que aconteceria quando o dia surgisse.
Ele sabia muito bem o que ia acontecer quando o dia surgisse e isso o manteve acordado durante toda a noite, não teria mais como fingir ou se apoiar em seus parentes para que pudesse sobreviver na tribo. Seria jogado para fora e teria que sobreviver sozinho por cinco anos, só então seria permitido seu retorno. Os demais que seriam jogados para fora junto com ele não o aceitariam de forma alguma, já tinha ouvido falar em histórias sobre Orcs que se juntavam em um bando e tinham uma vida mais fácil fora de suas sociedades, mas isso não aconteceria com ele - não participava das mesmas brincadeiras e sempre era xingado e chutado pelos outros, vivia com feridas no rosto por conta das brigas que arrumava e também das que não arrumava, mas que eram arrumadas para ele.
Não se sentia em casa naquele lugar, mas acreditava que aquele lugar era melhor do que ser caçado e morto do lado de fora. Sem a proteção dos guerreiros.
- Ja'har!
Ouviu o rugido e conhecia bem o portador da voz de trovão. Era seu pai. Talvez teriam uma última conversa sobre como deveria se portar naqueles últimos instantes, quais armas deveria levar e como sobreviver esses cinco anos sozinho. Talvez até aconselhasse procurar os demais e formar um bando, forçar uma relação com outros de idade próxima e garantir seu retorno. Uma coisa era certa, sabia que não teria traços de misericórdia na voz de seu pai, ele não era o melhor dos filhos e sabia que não importava o quanto se esforçasse, jamais seria. Sua predileção por ficar sentado perto dos anciões, ouvindo histórias antigas ao invés de brincar os jogos de guerra com outros filhotes era um grande incomodo para Ulfgar, seu pai.
- Ja'har! Responda agora!
Jogou o manto de pele que cobria sua cabeça de lado e respondeu, conforme solicitado. Levantou-se também e prostou-se em silêncio, com os braços juntos do corpo, segurando-os próximos das pernas. Não ousaria desafiar o pai, não considerando o que estava por vir.
- Sim senhor...
O pai, pele escura esverdeada, olhos amarelos e lupinos, já tinha traços prateados em sua barba e cabelos trançados. As presas saim de sua boca em duas lanças de marfim. Afastou as tiras de couro que separavam a entrada da cabana e o pequeno aposento no qual estava. O rosto fechado se aproximou do jovem orc, sem palavras e sem qualquer indicação prévia. Agarrou o braço de seu filho o arrastou para fora, seus pés mal conseguiam acompanhar e se arrastavam na lama do pátio. Foi menos de 2 minutos, mas parecia que estava sendo arrastado por horas.
- Vá.
Apontou para o portão de tora de madeira. A saída da tribo.
- Pai?
O questionamentou foi o que bastou, a pesada mão de seu pai desceu de cima para baixo e marcou seu rosto. Já havia apanhado antes, mas sentiu uma dor diferente dessa vez. Os tambores descompassados deixaram de importar nesse momento. Não entendeu o que estava acontecendo, só seria mandado embora pela manhã, junto com os outros filhotes e depois do ritual. Por qual motivo seu pai estava fazendo isso justo agora? Não queria passar essa vergonha na frente de toda a tribo?
- Vá.
Apontou novamente, a mesma mão que lhe acertou, para o portão de tora de madeira. A saída da tribo.
- Pai, eu não entendo... O ritual é amanhã.
Ulfgar ergueu a mão novamente, mas não o golpeou. Segurou o jovem orc pelo pescoço e por pouco não o ergueu, por ali mesmo - embora ficasse bastante clara a facilidade na qual poderia fazer isso. Aproximou o rosto e o encarou nos olhos.
- Você não nasceu para a tribo. Vá embora. Não volte, não tente passar em nenhum teste. Sobreviva.
O soltou. Ja'har caiu no chão e se arrastou, tomando alguma distância. Ele sabia o que o pai falava - as palavras eram verdadeiras, mas doíam da mesma forma. Não imaginou que seu pai nem mesmo esperava que ele se esforçasse para retornar à tribo. Então, ajoelhado no barro, usou as mãos e se ergue - daí, correu o mais rápido que pode para fora da tribo, deu uma última olhada para trás e lembrou-se do rosto de seu pai. Não eram lágrimas, era só a chuva. Também não era seu coração, eram os tambores.
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O primeiro ano foi bastante difícil. Mas aprendeu a viver, caçou pequenos animais e comia frutas, folhas e casca de árvore. O seu maior problema era a solidão. Frequentemente tinha sonhos com sua tribo e com os tambores que tocavam em seu último dia lá, sempre acordava desesperado e com o som dos tambores em compasso com seu coração de ritmo acelerado.
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Acostumou-se com a floresta e com a solidão depois de mais quatro anos, tinha cumprido o seu tempo e o ritual, mas lembrava do dia que deixou a tribo e não voltaria nunca mais.
Andava tranquilamente e sem medo, mesmo sendo ainda muito novo. Fazia já quase dois anos que não via ninguém, não trocava nenhuma palavra com nenhum outro ser sentiente, a não ser sua própria cabeça e quaisquer outras coisas da natureza. Aprendeu o tempo de tudo, das plantas e dos animais e sempre que podia, cantava. Seguia o som dos tambores e cantava. Era o que mais fazia, aproveitava os sons da região, os sons que tinha em sua cabeça e cantava.
"Na quilha virada
Na brisa gelada
A barca afundada
E vai um irmão
E vai um irmão
E todos de-"
Foi um baque surdo e seco, a canção foi interrompida.
Piscou os olhos, com a visão ainda embaçada, piscou mais algumas vezes e os abriu - logo sentiu uma dor latejante dos lados da cabeça. Sentia algo quente escorrendo pela lateral do rosto. Estava em uma estrada e ouviu risadas. Tinham três homens. Bichos homens. Já tinha ouvido falar deles, mas era a primeira vez que os via.
- Ô seu vermezinho, tava com merda no ouvido? Cantando igual um retardado! A gente deu um jeito pra limpar a sujeira que entupia os buracos de merda da sua cabeça, agora você vai ouvir bem as merda que canta!
Um deles disse, tudo embolado e de repente. Todos riram ao mesmo tempo. E foi erra a resposta da dor do lado da sua cabeça. Tinham feito algo com suas orelhas. E ele logo descobriu o que foi, o mesmo que falou primeiro apareceu na frente dele com um fio de corda e duas orelhas costuradas nesse fio, não queria acreditar, mas sabia que eram suas orelhas.
- Vocês têm esses nomes doidos, né? Mandibula-de-Ferro, Cabeça-de-Bagre, você vai ser o Orelha-Cortada!
- Ei, Orelha-Cortada!
Outro chamou, com um chute, em seu estômago. Estava amarrado e mesmo que quisesse, não poderia reagir. Passou algumas horas apanhando, até que cansaram e o abandonaram na estrada. Amarrado e entregue à morte. Fraco e sem forças, ferido e derrotado, qualquer animal poderia se aproveitar da situação e o devorar. Se entregou e desmaiou.
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Sentiu um balanço, estava sendo carregado. Ouvia vozes e o cavalgar de cavalos.
- Será que o velho salva?
- Rapaz, eu não sei nem se devíamos levar isso aí pro vilarejo. Vai sobrar pra gente...
- É uma criança. Não deve ser mais velho que o Leifar.
- Bom, criança ou não, não sei como vai ser.
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Ja'har foi acolhido pelo sábio do vilarejo, o ajudou como pode em troca dos cuidados e ensinamentos que recebeu. O sábio o incentivou a seguir o caminho pelo qual Ja'har tinha mais apreço, recebeu dois tambores simples com couro de vaca, os usava amarrados no pescoço. Flertava com outros intrumentos, mas gostava muito dos tambores e também de cantar. Tinha uma relação profunda com os sons e os usaria para a vida.