No rastro da Host - Beshilu

A agitação dos locais diminui conforme os três não compram nada e nem falam com os estranhos. Se fechando para fofocar. Os minutos passam e se somam em uma grande e desconfortável pilha. Pilha essa que engorda desconfortável sob os olhares das pessoas com vestes coloridas e os sons dos ratos pra lá e para cá. Um som metálico leva os olhos dos urathas para a grade. Um outro velho sai dali com alguns jovens que parecem entediados e sonolentos, todos vestidos com roupas tradicionais. Nenhum deles fala com vocês. Vão direto para fora da rua apertada passando entre os ratos.

O velho sacerdote finalmente está de volta. Tão repentinamente quanto apareceu da primeira vez. Atrás dele um homem magro, porém com mais substância que ele. Pelo menos vinte anos mais jovem e mesmo assim cinza. Uma barba grisalha que leva os fios brancos até as têmporas. O nariz longo e fino e as sobrancelhas grossas e ainda negras. A pele azeitonada marcada por rugas e olheiras profundas. Diferente do velho que parece se mover por puro ânimo e convicção religiosa, ele é movido por pura determinação. Um homem que parece andar sobre cacos de vidro a cada passo. "Então esse é meu velho primo..." O homem diz quando o velho mostra Axel. A voz dele é carregada de uma dor resignada. Nenhum traço de humor ou calor. O velho dá um passo atrás sorrindo e enquanto seria razoável esperara que ele ficasse para ver e ouvir, o homem só se afasta e se entoca de novo em um canto que não dá para ver.

Os olhos sérios passam de um para o outro e ele não está impressionado. Nem parece tocado pela nova família. O rosto deixa escapar somente resignação. Uma barreira resistente segurando um mar de dor. "Vieram fazer perguntas, eu imagino. Sobre minha filha?" Se dirige a todos com palavras, mas fixa os olhos intensos em Axel. É difícil ler mais do homem que se move tão pouco e parece tão cheio de dor. Mas uma coisa é clara, ele fede a ratos assim como a hoste.

Ele ouve Axel com atenção. Revelando pouco em sua postura e olhar. "Não há problemas com os papeis a tantos anos. O templo ajuda com os advogados para o caso da minha filha. Obrigado primo." O inglês dele é melhor do que o do velho. Mais correto.

Connor escreveu: Me desculpe a intromissão, mas o senhor parece com dor. Não seria melhor procurar um hospital?

Sem constrangimento e nem humor. "O tempo faz ruínas de todos nós. Nós queima com seu fogo invisível de dentro pra fora. Os médicos não podem fazer nada pelos meus ossos. Só drogas." Novamente a dor é o que mais aparenta no homem. A dor e sua luta constante contra ela. Mesmo assim ele se sujeita a perguntas invasivas de estranhos.

"Creio que tenha mais perguntas primo." Dessa vez a ultima palavra carrega algum sentimento. Algo como um desafio ou zombaria. Mas é difícil imaginar até esse mínimo de humor em um homem assim. "Ainda não chegou onde queria, eu aposto." Ele mal termina a frase e é acometido por algum desconforto. Os ombros retos e orgulhosos vacilam. Assim como os olhos cheios de resistência vão ao chão por um instante. Um longo instante que torce seu rosto em uma carreta de dor com veias saltadas e a pele brilhando com suor novo. Ele abre os olhos e parece novamente firme. Ajeita sua postura e olha para Axel com intensidade.

Em volta algumas pessoas começam a chegar e passar pelos comerciantes. Comprando e cumprimentando. Eles usam roupas classicamente Hindi e alguns deles andam calmamente para dentro do templo. Antes de entrar eles tiram os sapatos e fazem algumas saudações a estatuas ou talvez pessoas em cantos que não se podem ver dali.

Ele acena com a cabeça quando Connor se afasta arrastando Shaw. Mais nada. Sua atenção é toda de Axel. O movimento em volta tão alegre e colorido. Os dois tão imóveis no centro. O olho da tempestade. Ele ouve as perguntas sobre a filha sem se abalar. Sem dar qualquer sinal de sentimento. "Todos os fieis se entregam a Karni Mata e ela nos aproxima de Durga." Ele balança a cabeça. "Primo, o que você quer de verdade? Me punir por perder a minha menininha? Ela foi arrancada de mim a mais de dez anos e finalmente a cidade me devolve seus ossos amarelados. Você veio aqui me culpar? Me apontar suas insinuações covardes? Pelo menos seja sincero. Não foi a deusa que tirou ela de mim. Foi um de vocês infiéis." A dor inunda cada palavra. Com uma força difícil de igualar. Seu tom de voz não fica mais alto e sua fala não fica mais urgente. Só mais dolorida. Como se cada palavra fosse feita de cacos de vidro.

O homem encara Axel esperando, sua respiração volta logo ao normal. Seu corpo mal se move. Seus olhos aguardam fixos nos do elodoth.

O homem franzi o senho com a pergunta de Axel "Um de vocês. Um sem fé. Como todos andando sem rumo no mundo lá fora." Quando Axel se ajeita para tentar cobrir o amigo gigante ele consegue ver o desagrado de Abram. "Passaram anos demais. Pelo menos ela não virou uma escrava puta, mas sua morte não foi pacifica. Eles disseram que tinham cortes. Cortes nos ossos. Quem faz isso com uma menininha? Minha filhinha alegre e sorridente." Os olhos dele se desfocam enquanto vão para o passado.

Ele se volta para o presente com os olhos nos do elodoth "Realmente. Eu não entendo. Não consigo entender nada disso. Nem muito menos você. A benção da deusa é a vitória e essa conversa acabou agora." Ele cumprimenta Axel e lenta e deliberadamente se volta para o templo. Com passos lentos e sofridos ele começa o caminho de volta.

OFF:

Shaw não tem nenhuma dificuldade, exceto as tábuas que rangem e degraus pequenos demais e andaimes que balançam perigosamente sob seu peso e as distrações quando ele passa na frente das janelas. Gente dormindo ao alcance da mão. Uma família comendo reunida no chão. Um ninho de pombos. Um garoto assistindo pornografia estranha. Muito estranha. Um senhor idoso negociando passagem lentamente entre as nada seguras vias extra oficiais de transporte. Uma janela coberta de jornais de onde escapa uma impalpável fumaça de maconha.

É uma surpresa conseguir chegar no telhado sem oposição, o pior que aconteceu foi uma garota estrangeira cumprimentar ele em uma língua estranha. No telhado as telhas dividem espaço com vigas de concreto e um prédio literalmente passa por cima delas. Uma lixeira cheia no canto mostra que não é incomum pessoas passando ali. O irraka precisa se agachar bem e quase rastejar para passar por onde a outra construção invade o espaço do templo. Limo nojento e sujo no chão mostra pra ele que o lugar é pouco usado. Ele se espreme e passa. Connor nunca vai passar ali, mas Axel sim.

Do outro lado ele não vê qualquer acesso para uma rua, mas um muro na lateral dá passagem para um estacionamento vertical. O muro é bem baixo. Nada demais. Uma grade de metal como um mosquiteiro gigante em forma de domo, porém é um obstáculo para alguém que queira evitar portas e não passe por um dos buracos rasgados pelos ratos. Ele continua olhando os fundos do templo. Andando entre as telhas de barro com cuidado. Ratos. Centenas deles. Enormes também. Gaiolas vazias enchem a parte interna dos muros. Uma estátua com oito braços armados parece bem assustadora. Ela teria quase quatro metros se fosse uma pessoa e resolvesse ficar em pé.

O uratha agora decide olhar as paredes dos cantos. Algumas passagens. Nenhuma segurança. As janelas são pequenas ou apertadas demais para pessoas. Não para ratos. Porém duas portas, uma de cada lado do templo parecem boas entradas. Ele decide voltar com o que descobriu. Se arrasta de volta para a parte da frente. Dessa vez um devoto está lá. De costas para o irraka. É natural imaginar ele sendo empurrado para fora. Não seria o suficiente para matá-lo. Seria melhor bater a cabeça dele no escapamento do respiradouro que ele estava limpando. Demora um segundo inteiro para a informação realmente ser registrada. Ela vem junto com o cheiro da hoste. Vem lá de dentro. Daria para enfiar o cara inteiro ali.

Abram pega o papel, mas não diz mais nada. Ele não olha para trás quando faz suas orações para entrar no templo.