Quando essa porta se abrir, mais uma vez
A luz vai me alcançar
E então, por toda a eternidade
Nós vamos viver felizes para sempre
Distanciar-me de
Sacred Grove me trouxe um profundo pesar. O local sagrado deixado pelo meu pai transbordava energia mística, algo que alimentava não somente a mim, mas também à minha família. E, além de tudo, o bosque nos trazia lembranças; era um verdadeiro abrigo em meio ao caos daquela cidade tão insana. Ele nos fazia sentir uma minúscula centelha de todo poder que antes encontrávamos nos locais mais especiais da nossa ilha. Eu agradecia muito ao meu pai por ter instruído Cain e o ajudado a nos levar para lá, se ele não tivesse feito isso provavelmente teríamos enlouquecido ou definhado pela total ausência daquilo que reconhecíamos como parte de nossas essências.
A verdade era que eu não gostava de Nova York, definitivamente, e talvez não gostasse de nenhuma cidade grande desse mundo descolorido. Já estava no lugar há quase duas semanas e ainda não tinha encontrado nada de positivo além do bosque. Tudo era tão previsível, automático, movido apenas por obrigações e rotina. A selva de pedras era uma verdadeira prisão para uma alma como a minha e eu teria que me infiltrar em seu âmago, andar em meio aos escravos de um sistema que esquecera o poder da magia. Seria um martírio, como fora nos últimos dias. Até mesmo o ar era sufocante; e os sons… Máquinas e mais máquinas andando sobre rodas borrachudas, uma cacofonia de gritos e buzinas estridentes. Eu quase não conseguia ouvir meus pensamentos. Ansiava por voltar logo à Astéria, queria sentir o ar puro invadir meus pulmões, queria ouvir o som dos seres mágicos que povoavam nossas florestas. Queria ver um céu único e não apenas uma amostra limitada de toda imensidão do universo…
Eu ainda não poderia sequer ter esperanças de voltar tão cedo para meu lar mágico. Precisava encontrar Cain, e não apenas pelos meus próprios sentimentos, mas também pela sobrevivência de nossa família que agora se via em um ambiente tão diferente daquele que sempre estivemos habituados. Estávamos perdidos, nos sentindo intimidados pela nova realidade que nos cercava. Não desejávamos contato com ela, mas ela parecia estar à espreita, zombando de nossos medos, ela sabia que não tínhamos nenhuma outra escolha a não ser encará-la. Eu tomei essa responsabilidade para mim, tentando proteger ao máximo os outros que chegaram nesse lugar maldito comigo. Meu pai havia me passado uma missão e teria que cumpri-la, principalmente por sentir certa culpa. Se eu não insistisse tanto em vingar o sacrifício dos 7, Cain não teria desaparecido... E nós já poderíamos estar em busca do nosso verdadeiro lar…
O Bosque Sagrado era reconhecido como nosso porto seguro, e eu gostaria de ficar por ali até o regresso do vampiro, mas para meu desespero eu sabia que ele não voltaria sem ajuda, não apareceria como obra de milagre, dizendo que tudo não passara de um teste. Algo tinha acontecido e não precisava ter nenhuma habilidade sobre humana para suspeitar. Cain era muito responsável com respeito aos seus deveres e ele não se manteria ausente por tanto tempo sem ter um motivo muito forte para isso. Essa certeza me assombrava, e me fazia agilizar os passos me distanciando do bosque.
Para me deixar ainda mais insatisfeita, a conversa com Arctus não me dera a resposta que mais precisava e eu ainda me vi com mais questionamentos. O mago me dissera que não sabia muito sobre meu tutor, porém Cain deixou claro que procuraria alguém da Aliança. Arctus não sabia sobre meu tutor, mas falara sobre Astéria lhe trazer boas recordações. Isso me fez acreditar que ele já estivera no local, estaria certa sobre isso? O mago além de tudo parecia saber detalhes sobre mim, como minha inclinação para o caos. Que tipo de caos? O que ele sabia além do que me contara? Ele estaria falando a verdade sobre Cain? Com tantas dúvidas eu estava quase me arrependendo de ter procurado a Aliança. Como ela me ajudaria encontrar alguém de quem não sabe quase nada? Eu juro que estive em ponto de virar as costas e deixar aquele homem falando sozinho, mas a tal da Aliança era a única esperança que eu tinha naquele momento. Não havia mais contatos naquela cidade e eu precisava voltar com alguma boa notícia para minha família, nem que fosse uma notícia moldada para parecer positiva.
Eu estava dentro da Aliança e aquele homem me dera uma diretriz. Eu teria que encontrar um grupo de rebeldes que se intitulava “Filhos da Anarquia”. De acordo com Arctus eu iria me sentir em casa quando estivesse com eles. Seria meio difícil isso acontecer, só conhecia Astéria como lar, porém, não restou muita coisa a não ir em busca dos rebeldes. Ainda não sabia o propósito daquilo tudo, ainda não sabia se me ajudaria na principal missão que tinha, só me restava uma certeza, se Arctus me fizesse perder tempo enquanto eu precisava resolver um assunto tão sério eu nunca o perdoaria.
E dessa maneira cega eu caminhei pelas movimentadas ruas da cidade, desviando-me do toque e esbarrões dos escravos da tecnocracia. Eles viviam presos a celulares, relógios, agendas, a imagens que vinham de uma tela, eles caminhavam em seus carros ou se amontoavam em ônibus e quando não estavam dentro de suas máquinas, pareciam zumbis vagando pelas ruas. Ah sim, eles também viviam reféns de pedaços de papel que davam a eles o poder de comprar coisas inúteis pra viver vidas alienadas e igualmente inúteis.
Esse dinheiro era o que movia o mundo e Cain nos deu um pouco dele assim que se recuperara da travessia. Ele dissera que sem ele não viveríamos bem, que não conseguiriamos nada por aqui. Com o que restara desse monte de papel eu peguei um ônibus, descendo e avistando um bar.
Ainda tentava manter minha mente focada em meus propósitos e não à minha aversão ao mundo “real” quando fui surpreendida por uma garota que apareceu repentinamente de frente a mim. Ela abria um jornal, mostrava-me algo com certo entusiasmo. Eu ainda não entendia o motivo para aquela garota aparecer para mim daquela maneira, só que entendi menos ainda o que ela falou para um rapaz. A empolgação da garota era grande, mas murchou completamente com as palavras do outro. Olhei para o céu, o tempo não parava, eu precisava agir, mas tinha os dois na minha frente. Iria sair empurrando ambos, mas acabei tomando o jornal de sua mão. Já estava irritada. Como se não bastasse um mundo que não entendia - e muito menos gostava - ainda tinha pessoas que surgiam do nada, falando uma língua estranha e me deixando com cara de babaca. Não permitiria isso. As atitudes dela me fizeram acreditar que falava sobre alguma notícia daquele jornal e por isso comecei a lê-lo o mais rápido para logo amassá-lo e jogá-lo na lixeira dizendo: “desculpa, mas não me interessa”.
O jornal falava sobre protestos que duravam um ano. Os protestos eram contra acionistas e a crise que eles provocavam por tirarem dinheiro da população mais pobre de N.Y. Fui surpreendida, confesso, então haviam pessoas capazes de lutar por um propósito e não somente aquelas que viviam para o trabalho e para o marasmo. Era louvável, mas não da minha conta. Eu tinha meus próprios interesses. Entreguei o jornal para a mulher, dizendo:
—
Espero que tenham sorte com os protestos. — E continuei meu caminho...