Recomeço - Primeira lua nova - Terceiro capítulo

Lobo Partido acenou positivamente com a cabeça quando a menina perguntou se a outra a havia visto. Na sua mente passava as várias implicações daquilo. - Mas, eh... talvez ela não lembre... - Pigarreou. A garota diz que sabe quem é. Ele abre um sorriso travesso que vira uma risada ligeiramente contida. - Não, não sabe. - Mas tudo bem, era a atitude dos adolescentes, no fim das contas. Ele calculava que ela logo se tornariam definitivamente uma.

Lobo Partido dá mais alguns passos, até ficar a cerca de dois metros dela. Ele se senta no chão, como ela estava sentada. - Sempre vão ter medo de nós. - Ele rabisca no chão com os dedos. - Nós somos caçadores. Não quer dizer, eh... que nós somos maus. Só temos nosso lugar, eh... e cumprimos nosso papel. - Falar era difícil, mas era importante naquele momento.

- Na minha primeira, eh... mudança, eu perdi meu pai. - E antes disso ele nunca havia dado a importância que ele merecia. - Nunca é fácil. Mas você não machucou ela. Aqueles dois não deixaram. Eu não deixei.

- Somos caçadores. Na maior parte das vezes, eh... caçar é proteger um dos lados. - Aquela não era a história mais bonita, mas era a verdadeira. E ele não estava ali para mentir para ela. - Ele foi morto. Não sei por quem, eh... se pelas hostes de ratos ou por mim. - Ele nunca saberia. Talvez nem quisesse saber. - Na primeira? - Lobo Partido ergue uma das sobrancelhas. - Mas sua primeira mudança aconteceu hoje. - Ele se deixou ser genuinamente surpreendido. - O dia anoiteceu em plena manhã para testemunhar sua primeira mudança, você é uma irraka, uma lua nova.

Ele a observa para ver o que aquelas informações causavam nela. Não entendia exatamente como ela havia se transformado antes, mas descobriria. Aquela garota tinha muitas peculiaridades.

- Sim, lado... Quando você, eh... se transformou para proteger a outra menina, você escolheu um lado. Você protegia ela e feria a gente. Isso é caçar. - Ele vê a irritação da menina e tenta manter a calma. Por que tinha que ser tão pouco cooperativa? - Nós temos formas, cinco. - Ele levanta o dedo indicando 1. - Humana, hishu. - Depois ele abre toda a mão, indicando 5. - Lobo, urhan. - Ele vê se a menina acompanha seu raciocínio. - Quando te encontramos você estava na forma 2. - Os dedos indicador e médio levantados. - Quase humano, só que mais forte, dalu.

- A primeira mudança sempre ocorre sob a lua, não sei, eh... se você lembra do eclipse... - Ele tenta puxar isso da memória da garota. - Um eclipse quer dizer lua nova. E na primeira mudança você vai para a forma 3. - Ele mostra três dedos levantados. - É a forma de guerra, forte, rápida como um tiro. Imparável. Gauru. - Forçava sua didática. - É o que nós chamamos de primeira mudança. A sua foi... estranha. Diferente do normal. Eu acredito em você.

- Se chama Primeira Língua. Você já fala, vai ficar mais fácil. Como lembrar uma palavra numa outra, eh... língua. Só que essa é sua língua nativa. - Então ele para um pouco, ergue uma das sobrancelhas e faz uma cara deliberadamente caricata de chateado. - Ou você, eh... tá falando da minha dificuldade de fala?

- Entendi... - Por isso ela tinha aparecido em dalu. Por algum motivo ela conseguia se transformar até ali, antes mesmo da sua primeira mudança. Se a garota achava que Lobo Partido parecia querer ter todas as respostas, a verdade é que ele estava cheio de perguntas. - Vai doer cada vez menos. - Ou ela ia se acostumar com a dor, mas não precisava dizer aquilo agora. - Olha... - Mais uma vez ele mudou diante dela, indo para a forma dalu. - Nas quatro formas nós podemos nos controlar. Em gauru não, é preciso caçar. - Dessa vez a palavra na Primeira Língua pareceu mais pronunciada e evidente, pois ela foi feita para ser falada naquela forma.

- Que outros? - Ele perguntava. - Você conheceu outros como nós? - Aguardou ela responder. Então veio a pergunta que ele não queria. Será que ela poderia voltar para casa? Ele não sabia o que havia acontecido com a outra menina. - Sua mãe lembra do que aconteceu com ela? - Atrás dos olhos dele havia uma torcida para que a resposta fosse negativa.

- Acho que eu não preciso dizer que ninguém pode saber, né? - Aquela frase sai como um segredo, não como uma ordem. Depois que a garota responde, ele se levanta e voltar à forma hishu. - Como é o nome dela? A sua irmã? Vamos ver se já podemos encontrar com ela.

- Sim, com uma raiva que só pode ser saciada com sangue. - Era impossível aquela frase não ser soturna. Mas era verdadeira. - Está dentro de você, agora que você, eh... passou pela primeira mudança, é só querer. Tente. - Lobo Partido dá um sorriso de encorajamento para que a menina tentasse e aguarda o tempo que fosse preciso.

Quando ela fala que os outros eram Franco e Shaw, um peso sai das costas dele. - Ah... Isso é só porque eu sou o mais inteligente. - Não deu para conter a risada que vinha com um alívio. - Mas eles também sabem falar a Primeira Língua.

A garota fala que a mãe a odeia. Ele estica o braço bem devagar para tocar no ombro dela e só o faz se nota que ela permitiu a aproximação. - Só alguns poucos são capazes de nós compreender. - Eles teriam que vigiar a mãe e descobrir se ela era uma parente. Senão, a história da garota ia ficar ainda mais trágica. Ele aponta então para dentro da reserva. - Vamos voltar, lá tinha comida, eh... e roupas novas para você. Não vai querer sair lá fora só de jaqueta. - A garota toca no assunto da outra menina. Clara era seu nome. - Entendi... Ela é especial, não é?

Ele caminhava sem pressa reserva a dentro, em direção ao local onde a menina havia acordado. De lá sairiam e iam encontrar com os demais. - Vamos cuidar disso. - Respondeu quando a menina falou da mãe. Iriam cuidar daquilo.

Lobo Partido nota o receio da garota de se transformar. - Não se preocupe. Com o tempo, eh... vai entender que essas formas também são você. - Ele aponta para si mesmo, enquanto volta à forma hishu.

Quando a garota se retrai por conta de sua mão, ele para imediatamente e a recolhe. Seu rosto não transparece nem decepção nem impaciência, pelo contrário. Eles começam a andar e então Lobo Partido fica em silêncio. Andar em silêncio na mata era uma das coisas que ele mais apreciava. Só voltaria a falar quando estivessem de volta ao ponto de partida, a garota estivesse alimentada e vestida.

- Como é seu nome? Meu nome é Axel Brown. Entre o Povo me chamam de Lobo Partido. - Disse de forma muito leve, quase feliz, enquanto eles caminhavam para fora da reserva.

Acho que com o post da @Malk fechamos essa cena