por Lnrd Seg Ago 12, 2019 12:39 pm
"Sem problema, mas sem carros roubados hoje", disse piscando um olho, apontando então numa direção e pondo-se a andar a passos decididos. A "carona" seria mais uma caminhada em dupla.
Uma boa oportunidade para fechar algumas pontas soltas.
"A Máscara", começou naquele tom que usaria em qualquer conversa corriqueira, "é nosso marco civilizatório. Significa nunca nos revelamos e fazermos de tudo pra desacreditar nossa existência. Livros, filmes... a maioria dessas porcarias têm dedo nosso. Outro dia tinha uns adolescentes num programa tosco dizendo que eram vampiros. É claro que foram ridicularizados e isso é bom pra gente. Ainda mais hoje em dia...".
Muitas histórias mencionavam sociedades secretas de monstros controlando o destino da humanidade. Aparentemente, não eram tão tolas assim. Aquelas pessoas andando pelas ruas... seriam também vampiras? Seriam, ao contrário, peões no esquema daqueles "illuminati" sombrios? O quanto daquela cidade era uma fachada? Seria possível não desconfiar do que estivesse virando a esquina?
Justo no próximo cruzamento, uma barraca vendia carnes em espeto, petiscos cujo cheiro espalhava-se ao vento junto à fumaça. O aroma, apesar de familiar, não era de todo apetitoso, como se cinzento. Não lembrava mais alimento.
A carne crua, apesar de igualmente insossa, parecia mais tragável.
Uma criança acompanhou a passagem das duas com olhos vidrados, sem deter-se no mastigar daquela borracha dura e queimada. O que estaria fazendo àquela hora na rua?
“Não somos ‘imortais’ de verdade. Seu corpo não vai mais envelhecer. É isso. Deve ter uma palavra melhor noutra língua”. Conforme explicara em seguida, Letícia deveria temer coisas como o Sol e o fogo, assim como as garras e presas de outras criaturas da noite. “Uma estaca no coração te coloca no máximo em coma. E eu poderia ter invadido sua casa sem convite, se é que isso passou na sua cabeça. Mas às vezes um vampiro acredita tanto nessas besteiras que elas acabam acontecendo, entende?”, pontuou ela antes de chegar numa parte que poderia parecer bastante inesperada. “Mas você tem que vigiar sua mente também. É como um tipo de loucura. Uma coisa dentro da nossa cabeça mandando matar desenfreadamente. ‘A Besta’, como dizem. Se você ceder a ela... bem, ‘você’ não morre, mas ‘você’ morre, entende? Seu corpo continua por aí matando, mas sua personalidade já se foi. Você vira um bicho e só isso. E não tem retorno”. As coisas não pareciam tão romantizadas quando se poderia esperar. A eternidade era andar sobre uma corda bamba.
Sentado na rua, um homem de roupas bonitas, mas desalinhadas, assoviou para elas. Oferecera um gole da garrafa que trazia à mão. O odor de álcool era forte, mas havia uma nota ali que parecia mais interessante. O cheiro de vítima. Elijah-Iisa não pareceu dar bola.
- Todo mundo acha que quando se passa o véu da realidade comum, você automaticamente sabe de tudo sobre a vida e a morte. Não é assim não. Não sabemos nem de onde viemos... – aquela confissão poderia parecer uma decepção, apenas uma a mais que as anteriores e uma a menos das seguintes – Nem livres somos. Às vezes eu só queria ser um demônio destruindo tudo por aí, mas as consequências... isso é bem sufocante.
Já haviam ultrapassado alguns quarteirões, cruzando caminhos pelos quais provavelmente já tinhas pisado, mas que agora abriam-se de maneira estranha, como se parte de um mundo diferente. “Tô indo rápido demais?”, perguntara, mas não se referia ao ritmo da caminhada. “Se tiver me repetindo, é só falar...”.
Era um turbilhão de informações e parecia estar longe de terminar. O passeio, entretanto, ameaçava chegar ao fim. “Estamos quase. De lá pego o primeiro transporte”. Muitas perguntas e respostas teriam de ficar de fora.
O último assunto, talvez, ajudasse Letícia a entender melhor tudo aquilo.
"Tudo começou com Lilith", prosseguiu ela, naquele resumo. "Mas os outros vampiros acham que dizer isso é sacrilégio e sinal de gente perigosa. Logo eu?” Uma risada cortou a noite, contrastando com a tensão das dúvidas da novata. “Não dou a mínima". Aquela atitude segura de si era algo a se esperar de Elijah-Iisa. Era quase "punk" na maneira de ser.
- A primeira nômade encontrou o primeiro assassino, Cain. Ela ensinou os mistérios da noite. Mas ele também tinha os próprios segredos. Ele era amaldiçoado e transmitiu aquilo prum séquito. O vampiro original, agora com poderes... como os que usaram na sua cabeça.
"Se os cálculos são verdadeiros", explicou ela, apesar de não parecer confiar muito naquilo, "criaturas como eu somos a 13ª geração depois dele. Parece pouco, mas é que a nossa reprodução é um tabu. O sangue da criança é mais fraco que o de quem a criou. E dizem que a 14ª é um sinal do apocalipse. Na verdade os velhos têm medo de que o número de jovens cresça muito e cabeças comecem a rolar..."
Então, finalmente, ela se detivera. Era ali que se despediriam. Um céu ensolarado separaria elas do próximo encontro.