O efeito, lamentosamente, fora o contrário.
Xingamentos ecoavam da plateia, enquanto celulares formavam constelações orbitadas por planetas de fúria. Algumas pessoas, indignadas por uma senhora interpretar um punhado de ícones religiosos comumente associadas ao sexo masculino, haviam comprado entradas para atrapalhar a encenação.
Mas os obstáculos não vinham só da turba. A própria segurança do glorioso teatro municipal, sob o imperativo de um recém-chegado mandato judicial, ameaçava invadir o espetáculo e levar algemada a frágil, porém altiva, senhora.
Lá fora, coincidentemente (ou não), chovia.
Era por volta de 20h30.
23h45.
A chuva torrencial parecera, inicialmente, intentar uma lavagem dos aspectos asquerosos daquela cidade, banho e batismo dum ciclo vertiginoso de vida sobre morte.
Àquela hora, entretanto, transformara-se numa monção que, frente ao escoamento entupido e ao planejamento urbano estúpido, carregava veículos leves e invadia casas de áreas periféricas. Canais transbordavam.
No noticiário noturno, chamadas sobre pessoas arrastadas e prejuízos materiais.
As favelas choravam barracos desabados.
Numa rede social, o prefeito declarara estado de calamidade pública – aquele mesmo que, eleito a segunda vez em sequência, era processado pelo desvio de verbas do Departamento de Águas e Saneamento de Santa Dômina.
22h. Num bairro tradicional, uma casa histórica, mas de aparência mal preservada, era açoitada por uivos quase lupinos – mesmo que criatura alguma os emitisse.
O vento usava as frestas da construção antiga como um macabro instrumento de sopro, assobiando uma melodia melancólica.
Raios escreviam ultrajes com letras ardentes.
Insultos sobre cinza.
Às 18h50, choro no banco de carona dum veículo popular. Uma discussão de transito – “o carro vermelho pegou a vaga da Pick-up”, sugeriu alguém que passava, tendo ou não conhecimento do assunto – resultou numa troca de tiros que não só deixara ambos os motoristas feridos, quanto vitimizara um senhor na parada de ônibus adjacente. Não se tratava de uma grande avenida, mas o transito tornara-se lento naquele trecho, desesperando as pessoas que tentavam sobreviver à lotação da hora do rush. “Podiam ter morrido quando eu já estivesse em casa“, comentou alguém no coletivo.
As nuvens pesadas ainda não haviam nem começado a derramar.
19h30. Ou 20h.
Entre as paredes do Centro de Convenções da Universidade Federal, mal era possível notar a tempestade que se iniciava lá fora. Sob o holofote principal, a palestrante chave encerrava a fala ao público presente e ao online, visto ser parte de uma série de “vídeos inspiradores” para uma plataforma de vídeos.
“... e concluo com essa proposição: há poucos séculos, a ideia de transmitir a voz humana por ondas invisíveis no ar soaria como ‘bruxaria’. E se, num futuro, dominarmos a capacidade de mover objetos com a mente ou criar coisas com palavras e gestos? ‘Bruxaria’ ou apenas um tipo de tecnologia? E além. Será que uma forma ‘bruta’ disso, sem computadores ou entendimento dos mecanismos físicos, já não era praticada por civilizações antepassadas? Obrigada”. Aplausos.
O relógio no pináculo da praça marcava 20h quando duas crianças de rua pulavam em poças, dançando sob as grossas gotas. Roupas e cabelos ensopados, cantava qualquer coisa da moda. Estavam felizes, apesar da condição de pobreza.
Dali a pouco a enxurrada encerraria prematuramente aquelas vidas frágeis.
A âncora do jornal noturno provavelmente não teria notícias da história delas.