Capitulo 3: Briefing

Mi'larhys está culpada.

Por que a felicidade não podia durar para sempre?

Clint Harper havia acabado de me responder telepaticamente, de modo incrivelmente favorável, e meu coração tinha começado a serenar, transparecendo em um sorriso doce enquanto meus olhos retornavam ao rosado corriqueiro.

Mi'larhys aceita a Influência de Clint Harper.

• Escolho diminuir Perigosa, que passa a ser -1.
  
• Aumento Mundana, que passa a ser -1.
  

Lyra havia dado uma resposta um tanto preocupante para minha pergunta — jamais havia ouvido falar de um híbrido ke'tanish e lynnish, seria possível que fosse um filho misto? —, mas aparentemente Hana e Alex, ambos do sangue dos Eternos, não corriam perigo imediato — o que era um pequeno alívio.

Então, sem que eu tivesse sido previdente o suficiente para evitar aquilo, Lyra e Clint Harper começam a falar sobre os protocolos de segurança da Base Providência quanto à Família Imperial. E Kima — que havia acabado de manifestar o desejo de resgatar sua mãe da Tríade — se levanta intempestivamente, grita que seu pai é ligado à referida organização, fala algo sobre beterraba (que eu não fazia ideia do que era) e parte para a ofensiva. Contra mim!

Por um instante, pensei que a pobre garota mi'wanish poderia ter sido condicionada a me atacar através de lavagem cerebral ocorrida durante seu período de horror no cativeiro. Se a Tríade intentava me capturar, e Kima teve a infelicidade de se ver modificada por experimentos deles, aquela era uma possibilidade válida. Então, notei o papel na mão dela — aquele que eu havia entregado a ela e a Hana, quando nos vimos no Esconderijo Harper pela última vez. Foi tudo numa fração infinitesimal de tik, mas percebi que ela não estava com os olhos vidrados, típicos dos comandos mentais. Kima parecia descontrolada, instável e perigosa para as pessoas ao redor (especialmente para mim!), porém era senhora de si mesma e responsável por suas decisões.

Aquele era um ataque deliberado. Mas, por quê?

Nós tínhamos nos despedido bem. Tínhamos chorado juntas e feito as pazes pelos mal-entendidos iniciais. Ela estava avançando na minha direção e eu olhava para ela, presa num estupor que se desfez no instante em que senti o apoio ao meu lado literalmente sumir. John Pablo tinha se levantado. Não para me defender, como ficou claro, mas para ir até Kima.

Meu kayden tinha se levantado e me dado as costas — eu estava olhando para a nuca dele enquanto a realidade caiu sobre mim com o peso dos Sete Céus. E uma parede de vinhas verdes, grossas como meu braço, se interpôs entre Kima e eu. Matt. Ele estava quase deitado ali no outro sofá, mas lançou a rede de proteção a tempo, impedindo o ataque gratuito que estive prestes a sofrer. Vi, através de frestas na parede de vinhas, John Pablo abraçar e beijar Kima no rosto, parecendo confortá-la. Vi quando, sem ter coragem de olhar para mim, ele falou sobre liderar o grupo. E, como se não tivesse visto o que acabou de acontecer, o Hyperboy continuou aquela conversa sobre liderança, emendando com uma tentativa de ditar, embora não fosse o líder, qual deveria ser a missão prioritária da equipe. Ele não se dignou a dizer uma palavra sequer sobre o ataque de Kima a mim.

Se Kima tivesse se levantado do sofá, gritado coisas incoerentes e chutado um animal presente na sala — um cachorro, por exemplo — as pessoas teriam feito alguma coisa. Talvez até mesmo se revoltado contra ela, xingado ou a atacado. Se Kima tivesse se levantado e socado os monitores onde nos eram passadas informações, as pessoas teriam se voltado contra ela e sua estupidez, sua violência e sua falta de noção. Mas ninguém fez nada quando Kima se levantou e me atacou.

Eu recebia menos consideração que um animal, que um objeto. Matt impediu que Kima tivesse sucesso no ataque, e eu era grata, mas foi isso. Os mi'wanish consolavam Kima, falavam com ela com simpatia e carinho na voz e nos gestos, como se ela não fosse a agressora ali. Enquanto isso, eu permanecia sozinha no sofá, onde John Pablo me deixou.

Recolhi as pernas para cima do assento, abraçando meus joelhos, enquanto as roupas que eu usava morfavam-se em uma longa e pesada capa, com um profundo capuz cobrindo minha cabeça. Um dia, eu teria a fibra suficiente para fazer algo diferente em situações como aquelas. Um dia, eu seria capaz de me impor e me proteger, garantir limites e comandar respeito. Mas eu mal tinha completado quarenta e cinco deknas de vida — eu tinha quinze anos. Quinze anos. E estava sozinha em um planeta hostil.

Meus olhos secos como pedras, olhando para o alto dos meus joelhos dentro do casulo que fiz para mim mesma naquela capa escura e aveludada, minhas mãos agarrando bem fechadas as bordas do tecido grosso, enquanto as discussões continuavam. Clint e Alex Harper discutiam. Kima continuava gritando. Havia uma rusga entre querer usar os recursos da Base Providência e não querer nada que fosse alien ou que viesse de mim. Eu quis dizer que a base não era minha e não era alienígena. Não havia nada ali que se parecesse com a minha casa. Pelo que eu pude perceber, usaram o sistema de controle por voz dos computadores lynnish. E talvez houvesse meia dúzia de espécies de Lynn no biodomo. Lyra era uma cidadã do Império, mas ela era uma pessoa, não um componente da base, não um objeto. Tudo ali era "terráqueo", desde as comidas até as roupas, os materiais com que as coisas eram feitas, as pessoas gritando e o ódio gratuito.

Deixe que usem o que quiserem, deixe que façam o que quiserem, mas me deixe sair daqui. Eu me encolhi ainda mais no sofá quando a voz de John Pablo chamou em minha mente. Ele tinha dito que me protegeria com a vida dele, mas saiu do meu lado quando eu estive em perigo, para abraçar e beijar minha agressora, para consolar e proteger minha agressora. Sempre haveria uma garota mi'wanish pela qual me trocar quando eu precisasse dele. Eu apertei ainda mais a capa entre meus dedos, meus braços ao redor dos joelhos, e não respondi nada.

Ele também só tinha quinze anos, mas até onde isso desculpava o abandono e a traição que eu sofri? Diante dos olhos de todos — todos tinham visto nós dois abraçados naquele sofá — John Pablo me deu as costas para socorrer Kima Brown. Diante dos olhos de todos, Alex havia fingido que Kima tinha tentado socar uma lata de lixo, algo que não merecia comentários, e não uma pessoa, que era eu. Nem os adultos fizeram alguma coisa. Se não fosse por Matt, eu precisaria fazer algo muito ruim para deter o ataque da Kima — algo que eu não gostaria de fazer a alguém que, até aquele momento, eu pensava ser minha amiga.

Eu estou com medo. Eu não quero ficar aqui. Mesmo aos quarenta e cinco deknas eu era poderosa — poderosa como aqueles mi'wanish ainda não haviam começado a compreender. Mas meu poder era o Abismo entre as estrelas. Era aniquilação. Eu não queria obliterar uma pessoa porque não gostava de mim, por menos que eu entendesse seus motivos. Não é porque eu poderia me defender que eu queria faze-lo. Eu não queria machucar ninguém. Eu não queria destituir ninguém. Eu tinha machucado e destituído meu melhor amigo naquele mesmo dia. O ferimento já não doía mais — graças à resistência lynnish — mas já eram contas difíceis demais que eu tinha para acertar. Não queria ser alvo daquele ódio, daquela frieza, daquela traição.

Para os que por ventura olhassem para mim, pareceria que eu estava esmaecendo, ficando quase transparente, e depois voltando, continuamente, como se a tangibilidade do meu corpo oscilasse. E era exatamente o que estava acontecendo. Com a cabeça bem abaixada sob o capuz, encolhidinha no fundo do sofá, eu estremecia a cada novo grito ao redor, quase intangível antes de voltar, uma e outra vez. Alguém me salve. Por favor, qualquer um. Eu estou com medo. Eu estou sozinha e com medo.

Mi'larhys está assustada.

Mi'larhys perdeu o controle dos poderes por efeito do Golpe Poderoso.

Alguém me salve. Por favor, qualquer um. Eu estou com medo. Eu estou sozinha e com medo. Mas havia uma canção no ar. Uma melodia sem palavras, sem sons. Um canto que morava na escuridão, que se propagava por tentáculos de trevas. Uma música que tocava por sangue e ossos.

Eu ouvia tudo. Mesmo de olhos bem fechados, a telepatia me obrigava a ver tudo. Eu vi Alex enfrentar o avô e ser banido. Eu vi Kima desmoronar. Vi Matt assumir o comando da equipe fragmentada. Vi John Pablo sentar-se ao meu lado. Eu queria ser abraçada, contida, amada. Mas aquilo não veio. A canção da morte ganhou asas que encobriram as estrelas.

Quando Lyra me alcançou já era tarde. Minhas instâncias mentais superiores haviam perdido a luta e a khapzis, sobrevivente e implacável, tomou o controle de mim. Não havia raciocínio ou contenção, não havia equidade ou educação. Meu corpo se tornou intangível, escapando ao abraço dela, e ganhando a vantagem do terreno elevado ao erguer-se no ar, minha cabeça quase tocando o teto alto da sala. Por dentro, eu tentava desesperadamente lutar pelo controle, as lágrimas descendo pelo meu rosto enquanto a capa com capuz se agitava ao vento da Tempestade em mim.

Socorro. Socorro! Eu senti a energia cósmica misturar-se a arma terrível guardada na minha mente e tentei impedir que aquele poder horrível escapasse. Meus olhos se tornaram um púrpura tão profundo que eram quase negros, pontilhados de estrelas de antiluz e nebulosas do Vazio. O grito que veio da minha garganta fez tremer as telas e oscilar a luz da sala quando o poder aterrador explodiu de mim! Varrendo a Base Providência como um pulso imenso de energia cósmica e psíquica, drenando-me à exaustão ao liberar meu poder contido, e atacando tudo e todos no caminho da Tempestade avassaladora.

Mi'larhys está assustada.

A garota com a juba de goren seria a primeira a morrer. Não porque assim eu desejasse, mas porque continuamente se colocava no caminho do perigo, sem pensar a respeito. Eu a vi entrar na sala a tempo de impedir que o pior do pulso psiônico atingisse as pessoas ali reunidas. Mas e quanto a ela mesma? Por que ela não havia me mandado sozinha pelo portal? Por que ela estava se sacrificando à Tempestade?

A noite nos engolfou no instante em que o portal fechou-se sobre nós e o meu grito, que havia começado no interior da montanha, ecoou pelos contrafortes da escuridão. O vento cósmico varreu a garota de perto de mim e a energia psiônica a nocauteou em pleno ar. Minha mente de trabalho se debatia ferozmente para retomar o controle do meu corpo, dos meus poderes. Ivanova caía rumo a um chão cada vez mais próximo. Ela seria a primeira a morrer, bem diante dos meus olhos.

Se eu não tivesse uma mente superior.

A khalis finalmente rompeu a pressão por sobrevivência e as tentativas vãs de retomada de controle operacional. Abrindo-se diretamente para o infinito, clareando meus sentidos com intensidade absoluta, minha mente superior abandonou a capa e o capuz onde a khatnis assustada havia me deixado a mercê da khapzis implacável. E, antes que eu enlaçasse Ivanova, a khalis já havia morfado minhas roupas e me cingido nas Sete Coroas, reluzentes ao luar. Para que eu não esquecesse quem sou e não me enterrasse na lama da sobrevivência a qualquer preço.

E quem envolveu a ruiva nos laços da energia cósmica não foi a lynnish com olhos do Abismo, mas a Vênus cintilante, e eu a trouxe para perto, para a segurança e a cura das energias cósmicas, para a luz das estrelas em mim.

"Ivanova. Ivanova, você pode me ouvir? Parece que vivo me desculpando com você. E agradecendo."

Eu não precisava abraça-la para mantê-la no ar, mas o fiz mesmo assim.

"Ivanova, venha ver a lua comigo. Seu cabelo é da mesma cor do cabelo do meu melhor amigo. Acho que vocês se dariam bem. Você talvez colocasse um pouco de juízo na cabeça daquele ba'kha. Ou ele um pouco de juízo na sua cabeça."

Eu estava muito cansada. Fui descendo com ela do céu, devagar, flutuando gentilmente enquanto mantinha o abraço curativo entre nós.

"Ivanova, me desculpe por interferir na sua história com o John Pablo. Você o ama? Você o faria feliz?"

As portas da Base Providência se abriram exatamente quando eu toquei o solo com a ruiva. Abriram-se para John Pablo, que havia corrido para fora. Por qual de nós, eu não sabia dizer.

"Ela precisa de cuidados médicos."

Era a primeira vez que ele me via coroada. Porém, não percebi que exibia as vestes cerimoniais do meu povo até ver a sombra da coroa projetada pelo luar. E, então, já era tarde demais.

Mi'larhys está assustada.

Deknas depois, eu ainda lembraria desse momento como sendo um dos mais decisivos das nossas vidas. Ivanova poderia ter me antagonizado ou se voltado contra John Pablo. Ele poderia ter hesitado diante de mim ou tê-la escolhido. Eu poderia tê-la deixado cair ou ter empurrado John Pablo quando se aproximou de mim.

E eu ainda estava magoada com ele por ter ido consolar a Kima quando me atacou. E Ivanova certamente se sentia desconfortável ao vê-lo me beijar. Porém, o que não poderia ser resolvido entre nós? Cada toque dos lábios dele enchia meu coração de fogo. E foi com certa raivinha emburrada que desviei os olhos para ocultar dele a luz fantástica.

John Pablo sorria, fazia piadas e distribuía abraços — como se a alma dele também se inflamasse no ar que me tirava a beijos. O garoto meio inseguro e perdido que falhou em me proteger e tomou uma série de decisões erradas tinha sumido no instante em que os lábios dele selaram os meus. Eu estava magoada, sim. Mas o mundo respirava mais quando ele me beijava assim.

Apesar disso, mantive o silêncio telepático até que John Pablo se ajoelhou diante de mim, me chamando de "majestade".

"Pare com isso." — eu troquei o peso de uma perna para a outra, quase dançando de nervoso, mas ele logo pulou de pé, segurando meu rosto entre as mãos, e falando para minha mente com aquela voz que me deixava quente por dentro.

Ele queria saber se havia algo estranho acontecendo. E abraçou a mim e Ivanova de novo, quase sufocando a garota que mal se sustentava de pé.

"Calma aí, Jêpê!" — eu sorri, mas logo fiz um biquinho, porque continuava brava — "Tem muita coisa que precisamos conversar sim. Mas Ivanova tem que voltar pra enfermaria. E alguém precisa ver como a Titânia está, depois da... partida do Hyperboy.

Sustentei Ivanova com a energia cósmica e me ergui no ar também, fitando John Pablo com desafio nos olhos.

"Já que você é tão preocupado com a Kima, vai ver como ela está."

O desafio transpareceu na voz telepática também, mas — voando — eu me inclinei para beijá-lo na orelha.

"Vou levar Ivanova. E vou pro quarto. Não me deixe esperando."