Com a partida de seus amigos, Meileen ficou mais tranquila ao saber que eles não veriam seu sacrifício, e ela sabia que agora eles estavam em segurança. Ela pode se dedicar de corpo e alma a tal missão. Porém, ela não teve muita chance de contemplar a vida, pois a velha bruxa já a puxava novamente para a realidade.
- O que você está aprontando agora, sua velha? Por sua causa que estou nessa situação... – bufou mal-humorada a elfa.
Meileen segurou a esfera com desconfiança e começou a pensar instantaneamente em suas memórias. Era algo que acontecia de forma natural, sem esforço e sem ela perceber que o fazia, já que não queria compactuar com nada que a velha fazia. Naturalmente, sua primeira lembrança foi de quando chegou à cidade, já que só recentemente, através da velha bruxa, que ela se lembrou de sua infância na floresta, por isso que essa não foi a primeira lembrança que teve.
“Meileen tinha chegado à cidade após dias correndo pela floresta, sem rumo. Estava fraca, desidratada, faminta, cansada, assustada e machucada. Nunca tinha saído da floresta, nunca tinha visto humanos e mal tinha aprendido as primeiras palavras do idioma deles. Lembrava direitinho da sensação de confusão e medo que sentiu ao andar entre aquelas pessoas estranhas, mas estava tão anestesiada pela dor, que mal notou que vagava perdida pela cidade humana. Naporia era uma cidade muito pequena, praticamente isolada entre uma enorme floresta e uma cordilheira de montanhas, com pouca movimentação estrangeira, por isso todos se conheciam e a imagem de uma criança élfica zanzando foi perturbador. Mesmo assim, ninguém teve compaixão da criança. A pequena Meileen caminhou e acabou se deparando com a entrada do quartel, onde, com dificuldade, pediu ajuda. Foi rechaçada pelos guardas locais, ocupados demais em dar atenção a uma criança maltrapilha e que não conseguia se comunicar. A estranheza da raça daquela criança também falou alto para os ignorantes guardas que ficavam à entrada do quartel. Foi nesse momento que uma única pessoa estendeu a mão para aquela criança: Loren. Loren viu o sofrimento da criança e se ofereceu para ajuda-la e a criança, com medo, se afastou dela, mas a moça insistiu e conseguiu levar a pequena para sua casa, onde a alimentou e a limpou. Foram dias difíceis para as duas, já que uma não falava o idioma da outra e também pelos dias que Meileen passava calada e olhando para o nada, mas Loren não desistiu e com o tempo a criança foi se soltando.
Lembrou-se dos primeiros passeios com Loren pela cidade, foi quando decidiu que um dia entraria no quartel pela porta da frente e ninguém barraria sua entrada. Nunca mais voltou à floresta, isso só voltou a acontecer quando ela já estava na academia e era necessário fazer treinos lá e a jovem elfa mostrou-se exímia no que dizia respeito aos assuntos florestais. Ela tinha no sangue aquilo, e como ela não se lembrava de nada de sua infância, foi natural para ela circular entre as árvores.
Seu tempo élfico passava diferente, por isso ela viu entrar e sair vários guardas daquela guarnição, várias vidas e amizades, teve vários colegas de trabalho. Apenas Thoressar era mesmo, sem nada mudar. Passaram-se vários anos até que conhecesse Clover, sua melhor amiga.
Conheceu a maga quando a humana ainda era uma adolescente que estudava magia. Ela treinava suas formulas mágicas à beira de um rio, enquanto Meilee meditava a certa distância dela, porém a barulheira que a humana fazia atraiu a atenção da elfa. A ranger achava magos figuras chatas e sem graças, mas Clover era engraçada em suas reações de frustração e raiva quando errava. A audição aguçada da elfa fez com que os gritos da moça a despertasse de seu transe e Meileen caminhou sem fazer barulho até a beira do rio e não pode deixar de rir da jovem.
- Por que magos são tão barulhentos – revelou-se para Clover. A elfa sorria e tinha um matinho no canto da boca, que ela mastigava enquanto observava a maga sofrer com seus erros.
Foi assim, após algumas discussões, que as duas se tornaram amigas.
Um tempo depois, Meileen e Clover receberiam suas insígnias de conclusão de treinamento. Thoressar teve a ideia de permitir que alguns magos fizessem parte da milícia, uma vez que certas criaturas precisavam da força barulhenta dos magos. E Clover foi a escolhida.
Lembrou-se da primeira que viu Thoressar. Ela estava limpando a fachada da loja de sua mãe e viu Thoressar passar liderando um pequeno grupo para a patrulha da região. Ela saiu correndo e foi perguntar para Loren quem era o homem barbado, já que nunca tinha visto um anão na vida. Ficou impressionada. Foi mais um motivo para querer entrar para a guarda.
De fato, ela e Thoressar sempre se deram bem.
Suas primeiras missões passaram por sua mente. Seu primeiro amor, que nunca deu em nada. As várias pessoas que ajudou nos últimos anos. Mortimer e Loren. O rei éfico. A dor que sentiu ao saber de seu passado.
Eram pequenos e delicados os pés que tocavam o chão úmido da floresta, com força. As folhas velhas não impediam que pedras e galhos ferissem aquela pele delicada, trançando riscos vermelhos pelo líquido da vida. O suor se misturava com lágrimas que desciam pelo rosto rosado, o coração acelerado fazia o sangue correr rápido por suas veias e o medo aguçava seus sentidos.
Ela corria.
Corria por sua vida.
Estava brincando na floresta quando, subitamente, sua mãe apareceu e a pegou colo, correndo sem olhar para trás. Apenas a voz suave de sua mãe dizia que estava tudo bem. Mas não estava. Na única vez que ergueu o olhar para espiar por cima do ombro da mulher, a pequena viu uma fera horrenda perseguindo-as, com suas presas enormes cheias de saliva e garras que arrancavam nacos do chão da floresta a cada passada. Abraçada à mãe, a pequena não conseguia tapar os ouvidos para não ouvir o rugido furioso que a fera emitia.
Foi isso que se seguiu antes da pequena se ver só na orla da floresta.
Sua mãe a tinha posto no chão, quando estavam a certa distância da criatura, e disse uma pequena oração de despedida para ela, que guardou fundo em sua memória, tão fundo que o tempo apagaria de sua mente. Ou melhor, esconderia. Palavras que só fariam sentido num futuro distante.
"Apenas corra. Corra para bem longe. Corra sem parar para descansar."
E ela correu. Correu para bem longe. Correu sem parar para descansar.
A última imagem que teve de sua mãe foram suas costas e cabeleira acobreada antes da mulher ser atacada pelo monstro, ganhando tempo para que a pequena elfa se afastasse.
Seu corpinho esguio, já sem forças por tanto correr, tombou na orla da floresta, debilitado. As criaturas da floresta, como pequenos esquilos e alguns pássaros, brincavam em torno dela ou de sua cabeleira acobreada, sem que a menina se desse conta.
Acordou. Diante de si apenas uma estrada para o desconhecido.
Ao lembrar-se disso, as lágrimas escorreram de seu rosto, justo da elfa que não chorava por nada nesse mundo.
Sentiu novamente a raiva da bruxa verde, a mesma raiva que sentiu quando a encontrou a primeira vez, mas ao mesmo tempo tinha as memórias de Jalakow, a primeira praia que viu na vida e de Muraty, o simples arqueiro que a venceu em um duelo justo. Queria saber se ele tinha sido real ou era um truque sujo da bruxa, mas após viajar por outros universos, passou a sentir a ânsia de encontrar Muraty outra vez, para que pudessem acertar a questão do duelo. A elfa tinha perdido e aquilo era ruim. Era só por causa do duelo mesmo? O coração da jovem palpitava ao pensar no assunto, mas sabia que seria impossível.
Tinha seus outros colegas de trabalho, como Allen, o lunático do Kros e a ponderada Julia. Estariam eles bem? Os kobolds, tão esquisitos quanto Kros, além de Daryl. Tinha conhecido o Grande Verde e várias Grande Árvore, todas sábias. Patrick, tão insensato quanto uma criança de 6 anos. Apenas um rapaz deslumbrado.
Várias lembranças singelas e pequenas, cotidianas e corriqueiras passavam pela mente da elfa, misturadas com as grandes lembranças, aquelas que causavam comoção na elfa que se dizia durona, mas que agora chorava e sofria por conta das dores, da saudade, da culpa, do medo e da incerteza.
Zonza e cansada de tudo aquilo, a elfa cai ajoelhada, a face rosada e carregada, as veias do pescoço saltadas, a respiração ofegante, ela deixa a esfera rolar pelo chão, já que seus dedos cansados não conseguiram segurar o objeto.
Ela ergueu com dificuldade o olhar e encarou a velha, o cabelo suado caia sobre seus olhos.
- Vamos... – foi a única coisa que disse.