Quando deixaram a cidade para trás, passando pelo Portal dos Romeiros, já era final de tarde e o sol alaranjado começa a se esconder no horizonte. O Jeep, embora bem conservado, era visivelmente velho e oferecia pouco conforto, fazendo que cada buraco da estrada de terra fosse sentido e chacoalhasse os passageiros, especialmente os três sentados na parte traseira.
Depois de aproximadamente vinte minutos de estrada, o grupo cruzou com uma comitiva de homens, mulheres e crianças a cavalo, seguindo em direção à cidade. Alguns trajavam camisas com nomes e figuras de santos, outros somente vestiam roupas claras. Entre eles, havia uma imagem de Jesus Cristo, de escala média, feita de gesso. Potia os saudou com algumas buzinadas, que foram retribuídas pelos mais velhos com acenos e, pelas crianças, com vivas entusiasmados.
- Romaria a Bom Jesus – Cura-da-Água explicou – Esses estão indo a cavalo, mas outros vão de bicicleta ou mesmo a pé. A cidade fica lotada! Ano passado teve uma senhora que veio de joelhos desde Cabreúva. Dá para acreditar?!
Durante a viagem, no primeiro momento de silêncio, Potia ligou o rádio do carro e sintonizou, embora com dificuldade, na estação local. A música sertaneja tocou com ruído, mas a moça pareceu não se importar e cantou com vontade. Ao decorrer do trajeto, passaram por alguns estabelecimentos típicos do interior, como pesqueiros, granjas e uma loja de camping. A loja foi o último comercio que viram, pois, depois dela, a estrada de terra seguiu por uma área de plantações e fazendas de pasto. Depois de algumas horas de estrada, o sol já tinha se posto, mas o tempo continuava seco o suficiente para fazer a poeira levantar e refletir no farol amarelado do Jeep. Potia, que era tão animada e conversadeira no começo da viagem, tinha ficado quieta e contemplativa. O rádio ainda tocava, com seu ruído de fundo, mas a jovem aparentava estar focada na direção.
- Olhem – a motorista apontou para o lado esquerdo – Estão vendo essa plantação de uvas? São nossas e vocês devem marcar bem esse lugar.
Cura-da-Água fez uma curva à esquerda, logo depois de passarem pela plantação indicada por ela. A estrada ficou pequena e o Jeep teve que disputar caminho com galhos e folhas das árvores que arranharam rosto e braços dos passageiros.
À medida que o automóvel avançou, o grupo sentiu o ar úmido e um cheiro característico de terra molhada, como que se estivesse prestes a chover, embora nenhuma nuvem cinza ou negra estivesse no céu. Em todo caso, era uma contradição curiosa ao tempo seco de horas antes. Ser introduzido àquela atmosfera proporcionou para Mariele, Helena e Alec uma sensação de profundo bem-estar e alívio, semelhante a um momento posterior de uma boa sessão de lágrimas, dando sequência a um sentimento de calma e relaxamento. Aisha, por sua vez, foi impedida de tal sensação. A atenção da theurge foi chamada para um barulho de prantos e soluços sincronizados com a queda-d'água de uma cachoeira próxima, que aparentemente somente ela ouvia. Thea, por fim, nada sentiu ou ouviu, a não ser a estridulação de grilos.
Menos de um quilometro depois, o grupo chegou em uma clareira, onde o Jeep foi estacionado. O céu, cuja lua não se mostrava por estar em sua fase nova, era iluminado por centenas de contáveis estrelas. Ao lado da onde o automóvel foi estacionado, havia um caminho de pedras que levava até um bangalô.
Potia desceu do Jeep e foi em direção à casa, fazendo um sinal para que o grupo a seguisse. Quando chegou na propriedade, apertou o interruptor e as luzes se acenderam.
- É aqui que vocês vão ficar. Ficou vazia por alguns meses, mas Teçá pediu que fosse ajeitada para receber vocês – Potia estava visivelmente cansada - Olha, amanhã vocês devem se apresentar na assembleia. Devem se apresentar já como uma matilha e pronta para eventual trabalho designado, tá ok? Eu sei que pode estar sendo rápido para alguns de vocês, porque eu já estive nessa situação e foi rápido para mim. Mas somos guerreiros de gaia e temos um compromisso com a Sociedade Garou. Então usem esse tempo para se ajeitarem, fazerem o que devem fazer para amanhã estar tudo alinhado entre vocês. Também podem sair por aí e conhecer a área e os parentes, mas não se atrasem para a assembleia. Não se atrasem por nada.
Potia ajeitou a posição de uma cadeira, deixando-a alinhada com as demais. Ficou em silêncio por alguns segundos, aparentando querer lembrar de algo. Fez um gesto com a mão como que se desistisse e prosseguiu:
- Eu queria ficar e ajudar vocês nesse primeiro momento, mas minha matilha tá precisando de mim. Além do mais, vocês não são mais filhotes, certo? Tenho certeza que vão conseguir se organizar.
Cura-da-Água começou a descer o caminho de pedras e, quando entrou no Jeep, gritou:
- Aaah, só tem um quarto e a praxe é que ele seja do alfa! – A voz, embora continuasse cansada, agora tinha um “quê” de brincadeira, que foi seguida por um sorriso e uma buzinada de despedida.